Medidas atípicas: Da obrigação do devedor de informar seus recebíveis
Art. 139, IV do CPC. Ao invés da suspensão de CNH e passaporte, existem formas de se impor ao devedor a obrigação de informar onde tem créditos a receber.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
Atualizado às 10:58
O jurista brasileiro, muitas vezes, procura soluções complexas para problemas que poderiam ser resolvidos com simplicidade e de forma cientificamente elegante. Em tempo, se os doutores que leem este artigo, por razões de tempo corrido, quiserem pular a parte introdutória desse texto, podem começar a leitura a partir do 11º parágrafo, onde "elaboramos" uma solução que pode ser disruptiva no processo civil brasileiro.
(Isto nos remete à máxima do grau de complexidade de um problema versus a solução encontrada: 1) se você tem um problema complexo com uma solução simples, parabéns, é um gênio, contudo corre o risco de não ser compreendido no seu tempo; 2) se você tem um problema complexo com uma solução, igualmente, complexa, provavelmente você não ganhará dinheiro1; 3) se você tem um problema simples, com uma solução complexa; parabéns, você é um PhD, e, por fim; 4) se você tiver problemas simples a resolver, com soluções igualmente simples, certamente irá prosperar.)
O fato que não é incomum que o operador do Direito - mormente no sistema romano-germânico e, especificamente, no Brasil - tem uma certa tendência a buscar soluções elaboradas e, muitas vezes, de constitucionalidade duvidosa, para a resolução de gargalos que seriam - relativamente - simples.
Falamos aqui do processo de execução e das festejadas medidas atípicas do art. 139, IV. Na imensa maioria dos casos em que são aplicadas, os magistrados determinam a suspensão de CNH, passaporte e cartões de crédito do devedor. Data máxima vênia, com imenso respeito à quem pensa diverso, mas tais medidas são francamente abusivas e tem inúmeros entraves constitucionais.
Papini2, em livro escrito sobre o tema, aponta quais seriam: 1) (Sobre a suspensão do passaporte) o Pacto de São José da Costa Rica prevê, expressamente, que é proibido aos países signatários proibir estrangeiros e nacionais de deixar seu próprio país, salvo por questões de natureza criminal; 2) os arts. 3913 (do CC) e 7894 (do CPC) preveem o princípio da responsabilidade exclusivamente patrimonial do devedor e o da tipicidade dos meios executivos; 3) Apenas para cumprimento das obrigações pecuniárias, previstas no art. 455 do CP, seriam aplicáveis as medidas previstas no art. 1396, IV, do CPC; 4) As medidas atípicas, mormente a suspensão do cartão de crédito, violariam o princípio da autonomia da vontade. Seria o Estado-Juiz dizendo para uma empresa com quem ela pode, e com quem ela não pode, fazer negócios; 5) Suspensões de CHN e passaporte violam, também, o Direito Constitucional de Ir e Vir; dentre outros.
Para além disso, houve casos em que um músico fora proibido de fazer shows, isto é, que parasse de trabalhar, até que saldasse uma determinada dívida7.
Com efeito, nos parece que proibir alguém de exercer um ofício lícito esbarra, por certo, e foi o que decidira o TJ/SP àquele caso.
Sobre a impossibilidade de suspensão da CNH e passaporte do devedor, manifesta-se Horita8: "Como se percebe, a apreensão do passaporte para fins de coagir o executado a pagar o que deve revela-se inconstitucional e, também, inconvencional (violadora de tratado internacional), tamanha é a sua gravidade."
Assim, continuamos com o problema: o processo de execução é o verdadeiro gargalo do Direito Nacional, o que afeta, inclusive, outras áreas que não apenas o Direito Privado. Ora, se há um acúmulo de processos que têm sua marcha sensivelmente atrasadas, significa, então, o Poder Judiciário acaba sendo obrigado a direcionar mais magistrados para as áreas cíveis e trabalhistas, por exemplo. Magistrados estes que poderiam estar alocados em varas criminais, melhorando, outrossim o fluxo daqueles processos, o que resultaria em mais processos resolvidos e uma menor percepção de impunidade por parte da sociedade9.
Ganhar e não levar. Esta é uma questão/possibilidade que assombra os advogados desde o primeiro ano da graduação. Após muito analisarmos, fruto de um workshop que ministramos sobre o tema (medidas atípicas e processo de execução) encontramos uma solução que constranja o devedor a pagar seu débito e/ou fazer um acordo sem, contudo, violar a Constituição e/ou Convenções Internacionais de Direitos Humanos.
O juiz poderia determinar ao devedor, que não cumpre sua obrigação, que informasse no processo sobre créditos que tem a receber, vencidos e vincendos, ajuizados ou não, sob pena de, em não o fazendo, os devedores daquele devedor serem exonerados de suas obrigações.
Exemplifiquemos: Carlos é credor de João e não paga suas dívidas. Por seu turno João é credor de Marcos. O juiz ordenaria João a apontar sobre eventuais créditos que tem a receber, sob pena de - em não o fazendo - Marcos estar exonerado de sua obrigação.
É importante dizermos que uma medida atípica, como essa, teria o condão de não apenas ser constitucional, como - também - de ir ao encontro aos princípios que regem o processo de execução.
A medida que determina a apresentação dessas informações, contempla também o princípio do mínimo existencial para a manutenção da vida do executado. É importante dizermos, não estamos pedindo uma penhora. Após a apresentação dos créditos a receber, poderá o juiz determinar, com contraditório das partes, o que será reservado ao credor, quantas parcelas para o pagamento do débito, dentre outras.
Princípio da utilidade do meio executivo: Temos ainda, que a medida posta contempla o princípio, supracitado, da utilidade do meio executivo, posto que sendo aplicada, tem o condão de acelerar o processo, seja para a satisfação da execução, seja para a celebração de um acordo judicial. E nem se venha a falar aqui que a parte estaria sendo constrangida a produzir prova contra si própria. Este impedimento constitucional diz respeito ao processo de conhecimento, não à execução de um julgado com trânsito em julgado.
Princípio da boa-fé: Previsto nos arts. 5º10 do CPC e 42211 do CC, a Boa-fé impõe um dever de ética com, não apenas a parte contrária, mas - sobretudo - o Judiciário. Como dissemos alhures, não se trata de se obrigar alguém a produzir prova contra si mesmo. Esta questão não existe mais na execução judicial. A questão aqui é a parte agir de forma urbana e não tumultuar o processo. Não se pode obrigar, mediante multa diária ou suspensão de passaporte, ao nosso ver, o devedor a prestar este tipo de informação. Mas ele, ao não fazê-lo, estará se impondo ao risco de ver perdoadas/exoneradas de suas obrigações, todos aqueles que lhes devem dinheiro e isso inclui, obviamente, hipotecas e alienações fiduciárias. Lembrando que, interpor recurso, por parte do devedor, contra seus devedores seria uma forma de se aproveitar da própria torpeza.
Por fim, perguntariam alguns, em que medida a imposição deste tipo de obrigação ao devedor poderia ajudar o processo executivo? É importante que isso seja perguntado. Nossa experiência de 30 anos de advocacia corporativa nos mostra, mormente em tempos de redes sociais, sites de busca e grupos de WhatsApp, que tanto entre comerciante, quanto entre advogados, este tipo de informação corre como rastilho de pólvora em dia quente. Normalmente devedores e seus advogados são rápidos em descobrir uma solução/processo que possa extinguir a obrigação de um cliente seu.
Princípio da responsabilidade unicamente patrimonial do devedor: Diferente da suspensão da CNH e do passaporte do devedor, a medida proposta neste artigo atende ao princípio citado. Com a observação, a medida não diz respeito, diretamente penhora, mas sim ao dever da parte de agir com lealdade processual e prestar uma informação.
A partir da informação sobre créditos recebíveis, o credor e o juiz poderá avaliar quais são, ou não, penhoráveis e, a partir daí determinar a penhora total ou parcial dos mesmos.
Conclusão geral deste artigo: Em primeiro lugar, procuramos e não encontramos óbice legal ou constitucional algum à utilização deste tipo de medida pelo Poder Judiciário. Mais ainda, a proposta aqui lançada teria um efeito disruptivo na administração da Justiça, posto que os processos seriam encerrados com muito maior velocidade, o que estimularia, também, a celebração de acordos já fase executiva. Mais ainda, tanto com a possibilidade de recuperação de créditos, quanto com a possibilidade da exoneração de débitos quando os credores os ocultarem, certamente surgiriam no mercado lawtechs que se dedicariam exclusivamente a este tipo de busca de informações. Para finalizar, reiteramos, trata-se de medida que não enfrenta a polêmica existente na suspensão de passaporte/CNH do devedor.
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1 Por isso que, em nossa Advocacia, evitamos Ações Rescisórias e assemelhadas.
2 PAPINI, Paulo Antonio. Medidas Atípicas para Cumprimento de Ordem Judicial. Suspensão do Passaporte e CNH do Devedor. São Paulo. Lualri. 2018. ISBN 978-85-92749-19-4.
3 Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.
4 Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.
5 Art. 45. Na aplicação da substituição prevista no artigo anterior, proceder-se-á na forma deste e dos arts. 46, 47 e 48. (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)
§ 1o A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998)
§ 2o No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998)
6 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(...)
IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;
7 https://www.conjur.com.br/2019-jun-19/tj-sp-proibe-frank-aguiar-show-pagar-divida/
8 HORITA, Marcos Massashi. Suspensão da CNH e Apreensão do Passaporte do Devedor à Luz da CF e do CPC. Inovação ou Retrocesso. Juruá. Curitiba. 2019. ISBN 978-85-362-9004-1 (p. 122)
9 Não se trata de uma opinião destes autores, mas de dados objetivos e quantificáveis. Em 2.016 a Fundação Getúlio Vargas realizou pesquisa onde apenas 29% da população dizia confiar no Poder Judiciário do Brasil. https://portal.fgv.br/noticias/indice-confianca-judiciario-aponta-apenas-29-populacao-confia-justica
10 Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
11 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.



