O dado como prova e como armadilha: Quando o CNJ, o Bacen e o Judiciário falam a mesma língua
A informação revoluciona o Judiciário, revelando padrões de litigância, mas exige contexto e ética para não virar armadilha.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
Atualizado em 9 de dezembro de 2025 14:26
O dado se tornou o novo idioma do Poder Judiciário. Em planilhas, painéis e algoritmos, comportamentos processuais passaram a ser traduzidos em gráficos e métricas capazes de revelar o que antes estava oculto: padrões de litigância, recorrência de teses, concentração de autores e advogados. O CNJ, o Banco Central e demais órgãos de regulação financeira começaram, enfim, a falar a mesma língua - a dos dados. Mas se, de um lado, essa integração inaugura uma nova era de racionalidade e transparência, de outro, traz um alerta: o dado pode ser tanto prova quanto armadilha.
O uso massivo de dados judiciais permitiu um salto qualitativo na forma de compreender o sistema de Justiça. O Painel dos Grandes Litigantes do CNJ revelou, com precisão empírica, que a litigância abusiva não é mais um problema de volume, e sim de padrão. A informação deixou de ser estática para se tornar um instrumento dinâmico de diagnóstico institucional. Pela primeira vez, é possível enxergar a atuação repetitiva de determinados escritórios, o fatiamento de ações idênticas e a concentração de demandas fabricadas. Trata-se de uma mudança de paradigma: o foco se desloca da quantidade de processos para a qualidade do comportamento processual.
Mas há um ponto cego que precisa ser enfrentado: a análise pura e simples de números absolutos pode produzir diagnósticos enganosos. Uma empresa pode aparecer como "grande litigante" apenas porque possui milhões de clientes, alto volume de transações ou operações intensivas em massa - e não porque pratica condutas abusivas. Quando o dado é lido sem contexto, ele transforma tamanho em culpa e escala em indício. É justamente aqui que reside a armadilha: o mesmo painel que revela padrões de litigância também pode distorcer realidades institucionais, se não calibrado por métricas estruturais, como base de clientes, número de contratos ativos, volume diário de transações e natureza do setor regulado. Em outras palavras, a interpretação do dado exige mais do que estatística - exige método, contexto e integridade analítica.
Essa visão integrada - que conecta CNJ, Bacen, ANPD e tribunais - é o alicerce de uma nova governança de dados no ecossistema judicial. A interoperabilidade entre órgãos permite cruzar informações de forma preventiva e identificar, por exemplo, quando o mesmo CPF é usado em múltiplas ações sem o conhecimento da parte, quando um advogado replica centenas de petições idênticas ou quando uma conta bancária é reiteradamente indicada para recebimento de valores em diferentes processos. A análise preditiva, antes restrita ao setor financeiro, agora é aplicada à gestão da Justiça. O dado, enfim, passou a servir à integridade do sistema.
Mas esse poder exige cautela. O mesmo dado que revela comportamentos também pode gerar estigmas. Quando mal interpretado, ele se converte em armadilha: empresas são rotuladas como litigantes contumazes, advogados passam a ser automaticamente associados à fraude, e exceções acabam transformadas em regras. A fronteira entre prova e preconceito é tênue - e está na forma como o dado é coletado, tratado e utilizado. A ausência de contexto pode levar à criação de narrativas enviesadas, que reforçam visões simplistas sobre fenômenos complexos. A diferença entre justiça algorítmica e injustiça sistêmica está, portanto, na governança do dado.
A integração entre instituições é um avanço civilizatório. Quando o CNJ, o Bacen e o Judiciário compartilham informações sob critérios técnicos e éticos, cria-se um ecossistema de inteligência que previne o uso indevido do processo judicial. A interoperabilidade, nesse contexto, não é apenas tecnológica - é institucional e moral.
Ela exige clareza de finalidades, delimitação de competências e transparência na comunicação com a sociedade. Não basta coletar e cruzar informações; é preciso assegurar que esse movimento sirva ao interesse público, e não à vigilância ou ao controle desmedido.
O dado, por si só, não é neutro. Ele reflete as intenções de quem o interpreta e as estruturas de poder que o moldam. Por isso, a prevenção à litigância abusiva só se sustenta quando guiada por ética, governança e propósito. A tecnologia pode ampliar a eficiência, mas é a integridade que confere legitimidade. A inovação, sem valores, é apenas automatização. A Justiça, ao contrário, precisa continuar sendo humana - ainda que digital.
O futuro do Judiciário será, inevitavelmente, orientado por dados. Mas o desafio não é acumular informações, e sim transformá-las em sabedoria institucional. Quando o dado deixa de ser ferramenta de punição e se torna instrumento de compreensão, o sistema avança. E quando CNJ, Bacen e o Judiciário falam a mesma língua, o país dá um passo à frente. O importante é garantir que essa língua continue sendo a da Justiça - e não a da desumanização.
Viviane Ferreira
Sócia - Diretora jurídica de Excelência e experiência do cliente do Parada Advogados. Mestranda no IDP-Brasília.


