Regime de economia familiar e trabalho urbano do cônjuge
O presente artigo analisa a descaracterização da qualidade de segurado especial em regime de economia familiar quando um dos membros do grupo familiar exerce atividade urbana remunerada.
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:21
1. Introdução
A figura do segurado especial representa uma das mais notáveis conquistas sociais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao estender a cobertura previdenciária a uma vasta parcela da população que, historicamente, esteve à margem do sistema de proteção social.
O trabalhador rural que exerce suas atividades em regime de economia familiar, indispensável à subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo, foi alçado à condição de segurado obrigatório do RGPS - Regime Geral de Previdência Social, com base em um modelo de contribuição indireta, incidente sobre a produção rural comercializada
A Constituição de 1988 representou um marco fundamental na história do direito previdenciário brasileiro, ao reconhecer que o trabalhador rural não deveria ser tratado como cidadão de segunda classe no que tange à proteção social. O art. 7º, caput, estabelece expressamente que "são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social", uma série de garantias fundamentais. Essa redação, que inclui explicitamente o trabalhador rural no mesmo patamar do trabalhador urbano, representou uma ruptura com a tradição anterior, que, na prática, marginalizava o agricultor familiar. A Constituição de 1967, sob o regime militar, não oferecia a mesma proteção, e a legislação infraconstitucional da época criava distinções que prejudicavam o trabalhador do campo.
O art. 195, por sua vez, estabelece que "a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das contribuições sociais". O § 8º desse art., de forma específica, dispõe que "o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização de sua produção".
Contudo, a efetivação desse direito tem enfrentado notáveis percalços interpretativos, especialmente no que tange à manutenção da qualidade de segurado especial frente às dinâmicas socioeconômicas contemporâneas do campo brasileiro. Uma das questões mais tormentosas, e que constitui o objeto central deste estudo, diz respeito à caracterização (ou descaracterização) do regime de economia familiar quando um dos seus integrantes passa a exercer atividade urbana remunerada.
A realidade socioeconômica do Brasil contemporâneo é marcada por uma crescente pluriatividade nas áreas rurais. Famílias que historicamente dependiam exclusivamente da agricultura encontram-se, cada vez mais, em situações de complementação de renda através de atividades urbanas. Um filho que trabalha como vendedor em uma cidade próxima, um cônjuge que exerce atividade de costureira ou pedreiro, uma filha que trabalha como doméstica em períodos determinados - esses são cenários comuns nas propriedades rurais brasileiras. A questão que se coloca é: quando essa complementação de renda urbana é tão significativa que descaracteriza o regime de economia familiar, transformando-o em um regime de economia mista ou até mesmo urbano?
O STJ, no julgamento do Tema repetitivo 532, e a TNU - Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, no Tema 41, buscaram pacificar a matéria, estabelecendo, em síntese, que "o trabalho urbano de um dos membros do grupo familiar não descaracteriza, por si só, os demais integrantes como segurados especiais".
A intenção dos tribunais superiores foi louvável: evitar uma exclusão automática e massificada de famílias rurais do sistema previdenciário, determinando que a análise fosse realizada caso a caso, com a averiguação da "dispensabilidade do trabalho rural para a subsistência do grupo familiar".
Ocorre que, ao delegar às instâncias ordinárias a análise casuística sem fornecer parâmetros objetivos mínimos, os precedentes acabaram por potencializar o problema que visavam solucionar. A ausência de um critério balizador transformou a análise da "dispensabilidade" da renda rural em um exercício de puro subjetivismo judicial, gerando um cenário de profunda insegurança jurídica. Conforme se observa na prática forense, situações fáticas idênticas recebem soluções diametralmente opostas, a depender do entendimento particular de cada magistrado sobre o que constitui uma renda urbana "suficiente" para descaracterizar a economia de subsistência familiar.
Este artigo defende a tese de que a atual discricionariedade judicial na interpretação dos Temas 532 do STJ e 41 da TNU é incompatível com o princípio constitucional da segurança jurídica, em suas dimensões de previsibilidade e proteção da confiança. Sustenta-se que a integridade e a coerência do sistema de justiça exigem a adoção de critérios objetivos que possam guiar a atividade jurisdicional, sem, contudo, engessá-la.
Para tanto, propõe-se, por simetria e razoabilidade, a aplicação analógica do critério de 1/2 (meio) salário mínimo de renda per capita, já consolidado no âmbito do BPC-LOAS - Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social, como um balizador objetivo e justo. Tal critério estabeleceria uma presunção relativa de que a renda urbana não é suficiente para descaracterizar o regime de economia familiar, facultando-se ao julgador, caso superado o patamar, avançar para a análise de elementos subjetivos e do contexto fático probatório.
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