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Ação civil pública e abertura de mercado: Notas sobre caso de revogação de outorga para comercialização de energia e desdobramentos no setor

Análise dos fundamentos e implicações institucionais da decisão da ANEEL pela revogação de outorga de comercialização e autorização para ajuizamento de ação civil pública.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Atualizado em 11 de dezembro de 2025 13:57

Em Reunião Pública Ordinária realizada no dia 9 de setembro de 2025, a Diretoria Colegiada da ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica decidiu revogar a autorização de uma determinada comercializadora ("Comercializadora") para atuar no mercado como agente de comercialização. A decisão foi motivada pela constatação de descumprimento de contratos regulados (como Contratos Bilaterais Regulados), falta de aportes de garantias e inadimplemento perante a CCEE - Câmara de Comercialização de Energia Elétrica. O voto condutor, do diretor Fernando Mosna, mencionou a identificação de uma postura especulativa no mercado, que teria assumido compromissos sem a devida cobertura contratual ou financeira.

Diante desse cenário, a Agência decidiu não apenas pela revogação da outorga, mas também por autorizar a Procuradoria Federal a ajuizar Ação Civil Pública para reparação dos prejuízos causados pela conduta da empresa ao mercado regulado e aos consumidores. A decisão indicou, ainda, a solicitação de desconsideração da personalidade jurídica na ACP, medida rara (quiçá inédita) nas deliberações da diretoria da ANEEL. A Comercializadora interpôs recurso administrativo, alegando, entre outros pontos, desrespeito ao contraditório e extrapolação do escopo do Termo de Intimação. O recurso aguarda julgamento pela própria Agência.

Dada a particularidade da decisão, o presente texto examina sua relevância sob a ótica setorial e as discussões jurídicas que emergem da autorização para o ajuizamento da Ação Civil Pública com orientação expressa de pedido de desconsideração da personalidade jurídica. Fazemos esse percurso iniciando por uma contextualização do papel das comercializadoras no mercado de energia atual, sobretudo no âmbito da prometida abertura do mercado.

A expectativa pela abertura do mercado livre de energia para consumidores de menor porte

Desde os anos 1990 o Brasil avança, em ondas, na liberalização do setor elétrico. O movimento do momento é a abertura "total" do mercado livre para consumidores de baixa tensão. A abertura vem gradualmente expandido por atos infralegais do MME - Ministério de Minas e Energia, com destaque para a portaria MME 465/19, que estabeleceu cronograma de ampliação do ACL e determinou que a ANEEL e a CCEE apresentassem estudos para viabilizar a entrada de consumidores de menor porte. Posteriormente, vieram novas medidas como a portaria normativa MME 50/22, que estruturou o modelo varejista e previu mecanismos de representação para pequenos consumidores, além de diversas consultas públicas e tomadas de subsídios (como a TS 10/21 da ANEEL e as CPs MME 131/22 e 137/22) voltadas à consolidação da abertura total.

Essa curva teve como ápice recente a MP 1.300/25, na parcela em que propôs a universalização do direito de escolha do fornecedor de energia e estabeleceu prazos concretos para a abertura aos consumidores de baixa tensão. A MP 1300 deu densidade política e operacional ao tema da abertura, prevendo instrumentos típicos de mercados liberalizados - como o SUI - Supridor de Última Instância - e reforçando a necessidade de regulação voltada à proteção do consumidor e à estabilidade do mercado.

Com a perda de vigência sem incorporação dos dispositivos que tratavam da abertura de mercado ao texto final da lei de conversão aprovada pelo Congresso, a discussão migrou para a MP 1.304/25, editada em julho, originalmente voltada a temas como encargos e subsídios setoriais. A MP 1304 foi aprovada existindo apenas o último passo da sanção presidencial para então ser confirmado o cronograma de abertura do mercado.

No texto aprovado o cronograma de abertura total do mercado livre de energia elétrica (ACL) ficou estabelecido em até 24 meses para consumidores comerciais e industriais (baixa tensão) e em até 36 meses para os demais, incluindo residenciais. Esse cronograma estará condicionado à criação de um SUI - Supridor de Última Instância, à regulamentação do encargo de sobrecontratação, a campanhas educativas e à definição de tarifas para os ambientes regulado e livre.

Portanto, a percepção entre agentes, reguladores e consumidores é a de que a abertura plena do mercado de energia é uma realidade próxima e praticamente inevitável, cuja implementação exigirá robustez institucional, capacidade de gestão de risco e maturidade regulatória - temas diretamente relacionados à decisão da ANEEL.

O papel essencial das comercializadoras

No modelo liberalizado do setor elétrico brasileiro, as comercializadoras atuam como intermediárias centrais entre geradores, consumidores e distribuidoras - negociando contratos bilaterais de compra e venda, assumindo riscos de volume, de entrega e de preço, e gerenciando a exposição ao PLD - preço de liquidação de diferenças no MCP - mercado de curto prazo. Esse papel ganha ainda mais relevância com a abertura gradual do mercado e a crescente migração de consumidores, exigindo ofertas adaptadas a perfis de consumo cada vez mais pulverizados e heterogêneos, com o potencial de atendimento de milhões de consumidores de energia que poderão escolher o seu fornecedor.

Para se ter ideia, no 1º semestre de 2025, o volume financeiro de contratos de energia no Brasil alcançou cerca de R$ 49 bilhões, um crescimento de cerca de 15,4% em relação ao 1º semestre de 20241.

Paralelamente, a volatilidade de preços no mercado de energia tem se intensificado. Segundo dados da plataforma CEIC, em 2025 o PLD horário atingiu R$ 1.542,23/MWh2, recorde histórico e reflexo das janelas extremas de PLD intradiário que têm se intensificado. A elevada variabilidade intradiária e entre submercados gera, na prática, maior complexidade para a atividade das comercializadoras na tarefa de oferecer produtos aderentes ao perfil diário de consumo e às distintas localizações geográficas dos geradores e consumidores. O descolamento do PLD entre horas do mesmo dia, bem como entre diferentes submercados do SIN impõem mecanismos sofisticados de gestão de risco para viabilizar a atividade de comercializadoras.

É nesse contexto que a decisão do caso da Comercializadora assume relevância. À medida que o setor caminha para a abertura total do mercado (ou ao menos coloca as expectativas neste sentido), cresce também o risco de inadimplemento, de assimetrias informacionais e se reduz o espaço para práticas meramente especulativas. O desligamento de comercializadoras de energia e cobrança de valores não é uma novidade no setor de energia, havendo uma dezena de ações de cobrança movidas pela CCEE com o objetivo de recuperação de valores suportados pelo mercado em virtude do rateio da inadimplência.

No entanto, a decisão da ANEEL no caso da Comercializadora, de caráter público, ao vincular a revogação da outorga à autorização de ação civil pública e à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, sinaliza um endurecimento da supervisão regulatória no segmento de comercialização, talvez historicamente o mais liberalizado dos que integram o setor. O "recado" regulatório vai ao cerne da função das comercializadoras: permite imaginar que a expansão do mercado virá acompanhada de um incremento equivalente em responsabilidade dos agentes e enforcement do regulador.

Nos últimos anos, a CCEE tem reforçado sua atuação neste sentido por meio do monitoramento de mercado, especialmente após episódios de inadimplência e desequilíbrio financeiro de alguns agentes. O monitoramento passou a empregar ferramentas preditivas e análises de solvência para identificar comportamentos atípicos de comercializadoras e avaliar o risco sistêmico de suas posições. Essa evolução foi acompanhada pela criação de novos mecanismos de mitigação, como a exigência de garantias financeiras mais robustas, a atuação preventiva em casos de descumprimento contratual e o compartilhamento de informações com a ANEEL.

Essas iniciativas refletem uma curva crescente de mecanismos de controle e preparação para a abertura, em que ANEEL e CCEE caminham de forma coordenada. De um lado, a CCEE aperfeiçoa seus instrumentos de supervisão financeira e operacional; de outro, a ANEEL reforça a atuação sancionatória e de responsabilização civil, colocando a integridade do mercado como um bem público a ser preservado. O caso serve como um alerta do estreitamento do espaço para portfólios com risco desbalanceado, havendo uma sinalização clara da agência reguladora a respeito da tentativa de recuperação dos valores devidos com a utilização de todos os recursos disponíveis.

A autorização para Ação Civil Pública e a atuação da Procuradoria Federal junto à ANEEL

À parte da avaliação das repercussões setoriais da decisão, há discussões jurídicas sob o ponto de vista da autorização para ajuizamento da ACP - ação civil pública em face da empresa, e da recomendação de pedido de desconsideração de sua personalidade jurídica. Trata-se de medida incomum no histórico da ANEEL, o que torna relevante examinar seus fundamentos normativos, a controvérsia procedimental levantada pela Comercializadora em seu recurso e os aspectos jurídicos da desconsideração da personalidade jurídica no contexto de uma ação civil pública movida por uma autarquia.

i. Legitimidade da ANEEL para o ajuizamento da ação civil pública

A legitimidade da ANEEL para propor ação civil pública decorre de sua natureza jurídica de autarquia federal, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, representada judicialmente pela PGF - Procuradoria-Geral Federal, órgão da AGU - Advocacia-Geral da União. Essa representação encontra amparo no art. 131 da Constituição Federal, no art. 10 da lei 10.480/02 e no art. 1º da portaria PGF 172/16, que dispõe, dentre outros assuntos, sobre as procuradorias federais junto às autarquias e fundações.

Além disso, o art. 5º, inciso IV, da lei 7.347/1985 (lei da ação civil pública) confere legitimidade ativa às autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista para propor ACPs, sempre que a ofensa atrelada a uma das hipóteses previstas no art. 1º da mesma lei estiver relacionada com suas finalidades institucionais. A jurisprudência do STJ tem reconhecido essa legitimidade sempre que o interesse tutelado se conecta à missão pública do ente, mesmo quando o dano não seja estritamente ambiental ou consumerista (v.g., STJ, REsp 1.149.324/RS).

No caso da ANEEL, a finalidade institucional de regular e fiscalizar o setor elétrico (lei 9.427/1996, art. 3º) abrange a tutela da modicidade tarifária, da segurança do suprimento e da estabilidade do mercado, de modo que a defesa judicial desses valores pode justificar o uso da ACP. A representação judicial, entretanto, é de competência da PF/ANEEL, sujeita à orientação técnica e hierárquica da PGF/AGU, conforme portaria 172/16.

Assim, do ponto de vista formal, a autorização da diretoria colegiada da ANEEL para o ajuizamento da ACP constitui ato de vontade institucional da autarquia, cuja execução jurídica caberá à PF/ANEEL - não se tratando de ingerência sobre a função de representação, mas de manifestação de interesse institucional que legitima a atuação da Procuradoria no âmbito de suas atribuições legais.

ii. A controvérsia procedimental: a ACP deveria ter sido indicada no processo administrativo?

Um dos principais argumentos levantados pela Comercializadora em seu recurso administrativo diz respeito à ausência de previsão da ação civil pública no termo de intimação e no processo sancionador que culminou na decisão da ANEEL. Segundo a empresa, a deliberação teria extrapolado o objeto do procedimento - que tratava apenas da revogação da outorga -, introduzindo, sem prévia oportunidade de contraditório, uma medida com potencial de gerar efeitos jurídicos e reputacionais relevantes.

A questão é juridicamente sensível. A lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo federal, consagra princípios que apontam no sentido de ser necessária uma congruência entre a decisão e os limites da instrução e aos pedidos formulados. A necessidade é decorrência lógica da garantia constitucional à ampla defesa e ao contraditório e por aplicação analógica e complementar do art. 141 do CPC, que limita a decisão ao alegado pelas partes no processo. Por outro lado, a deliberação da ANEEL não aplica diretamente nova sanção à Comercializadora, mas autoriza sua procuradoria a avaliar o cabimento de uma ACP, que é ato judicial e autônomo, sujeito à análise própria da PF/ANEEL e da PGF/AGU. Sob esse prisma, a autorização não configura desvio procedimental, mas um encaminhamento administrativo subsequente à apuração dos fatos.

Apesar de casos de ação civil pública ajuizada por órgãos reguladores não serem uma novidade (pode-se dizer até que são um tanto comuns em contextos como do Ibama e Anvisa), a legislação e a prática administrativa ainda não oferecem parâmetros consolidados sobre a necessidade ou não de enfrentar essa possibilidade de futura a ACP no processo administrativo. Neste ponto, a discussão parece assumir duas roupagens: se a independência das instâncias de responsabilização (administrativa e civil) e a legitimidade da ANEEL para propor ACP fazem prescindir a discussão prévia em âmbito administrativo; e se a autorização para ajuizamento de ACP pode se configurar como sanção per se, que exigiria prévia ciência e defesa, ou mero desdobramento institucional respaldado pela proteção constitucional à inafastabilidade da jurisdição.

O tema, portanto, habita zona cinzenta, e o desfecho do recurso da Comercializadora pode contribuir para clarear os limites procedimentais da atuação das autarquias em matéria de responsabilização civil.

iii. A desconsideração da personalidade jurídica e sua pertinência ao caso

Outro ponto de destaque da decisão da ANEEL é a indicação expressa de pedido de desconsideração da personalidade jurídica da Comercializadora. O art. 50 do CC, especialmente após a redação dada pela lei 13.874/19 (lei da liberdade econômica), estabelece que a desconsideração somente é possível em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. O § 1º reforça que o desvio de finalidade pressupõe o uso da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, enquanto a confusão patrimonial se evidencia pela ausência de separação entre os patrimônios dos sócios e da empresa.

Curioso notar que o tema da desconsideração da personalidade jurídica está na ordem do dia no âmbito do poder público. Exemplo claro é a nota técnica 3657/2024/COSEP/DIREP/SIPRI, publicada pela CGU - Controladoria-Geral da União no último dia 3 de outubro. Na oportunidade, mesmo com uma disposição específica, no art. 14, da lei 12.846/13, bem se sinalizou a necessidade do uso comedido e excepcional do instituto, associado à constatação de abuso do direito. Embora trate de contexto distinto, os parâmetros podem servir de baliza para outros casos envolvendo poder público e interesses difusos.

No contexto de uma ação civil pública movida por uma autarquia reguladora, a aplicação desse dispositivo suscita uma questão interpretativa: como compatibilizar os requisitos civis de desconsideração com as infrações regulatórias típicas do setor elétrico, relacionadas a descumprimentos contratuais ou exposição de risco sistêmico, que nem sempre envolvem abuso do direito ou lesão a credores? A decisão da ANEEL não afirma, de forma categórica, que houve desvio de finalidade ou confusão patrimonial, mas sugere a necessidade de apuração judicial sobre a eventual responsabilidade pessoal de administradores e controladores diante da magnitude dos prejuízos causados.

Sob essa ótica, a indicação de desconsideração no bojo de uma futura ACP cumpriria, ao menos, uma função preventiva e sinalizadora, voltada a reforçar a accountability dos agentes do mercado - sem prejuízo de se poder questionar a legitimidade de utilizar o instituto da desconsideração com esta finalidade. Contudo, sua concretização dependerá, no Judiciário, da demonstração empírica dos requisitos do art. 50 do CC, não bastando a mera inadimplência contratual. O debate tende, portanto, a girar em torno de se o comportamento da Comercializadora, descrito pela ANEEL como especulativo, reiterado e potencialmente lesivo à estabilidade do mercado, configura abuso da personalidade ou apenas uma má gestão empresarial dentro de um contexto de risco comercial inerente ao funcionamento normal do mercado de energia e da atividade empresarial de comercialização.

Em qualquer cenário, o caso introduz um precedente de possível persecução estatal da responsabilização da pessoa física por trás do agente de comercialização. Caso a ACP com pedido de desconsideração da personalidade jurídica seja levada a cabo, o setor terá um teste importante para a delimitação do alcance do enforcement da ANEEL na tutela judicial de interesses difusos do mercado.

Onde estamos e para onde vamos

A decisão da ANEEL no caso reforça o papel institucional das Procuradorias Federais junto às agências reguladoras como instrumentos de persecução judicial de condutas lesivas ao interesse público regulado. Ao autorizar o ajuizamento de ação civil pública, a Agência demonstra disposição em transpor os limites do enforcement administrativo - tradicionalmente restrito a multas, advertências ou revogações - e adotar uma atuação integrada entre o poder sancionador e o poder de agir em juízo. Essa mudança sinaliza uma compreensão mais ampla da função das autarquias: não apenas regular e fiscalizar, mas também buscar a recomposição dos danos e a responsabilização civil de agentes econômicos que afetem a estabilidade do setor.

O caso também se insere em um processo mais amplo de amadurecimento institucional que acompanha a transição do setor elétrico brasileiro para um ambiente de maior liberdade contratual. À medida que o mercado se abre a novos agentes e consumidores, cresce a importância de uma estrutura regulatória capaz de responder com rapidez, coerência e credibilidade a condutas que ameacem a estabilidade do sistema. A decisão da ANEEL, nesse sentido, traduz o esforço de alinhar o regime de governança do setor às exigências de um mercado em expansão - em que a confiança nas regras e na atuação do regulador é tão essencial quanto a competição entre fornecedores.

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2 https://www.ceicdata.com/en/brazil/difference-settlement-price-pld-submarket-annual/difference-settlement-price-pld-maximum-hours

Rafael Machado

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Advogado de Energia do Lefosse.

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Pedro Henrique Dante

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Sócio de Energia do Lefosse.

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Marcelo Ribeiro

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