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Reforma tributária e industrialização por encomenda

A ausência de suspensão no IBS e na CBS cria insegurança e pode reonerar a cadeia industrial.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Atualizado às 13:33

A LC 214, que regulamenta o IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, inaugurou oficialmente a transição para o novo modelo tributário sobre o consumo no Brasil. O país passa a operar, gradualmente, sob um sistema de IVA dual composto pelo IBS e pela CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços. Ao contrário do que muitos esperavam, porém, o legislador complementar não disciplinou um dos mecanismos mais sensíveis para a indústria brasileira: o regime de suspensão aplicável às operações de industrialização por encomenda. A LC 214 prevê suspensão apenas para a Zona Franca de Manaus, no art. 445, deixando sem regulamentação específica todas as demais operações desse tipo realizadas no território nacional.

Essa ausência de disciplina é particularmente grave porque a industrialização por encomenda constitui uma das bases mais importantes da estrutura produtiva brasileira. Trata-se da operação em que o encomendante envia insumos ao industrializador, que executa determinada etapa de transformação e devolve o produto acabado, sem que haja transferência de propriedade. Esse modelo permite especialização produtiva, redução de custos, melhor uso de capacidade instalada e dinamismo nas cadeias de suprimentos. Hoje, ele é protegido pelo regime de suspensão do ICMS, que impede a tributação nas remessas e retornos e assegura neutralidade econômica. O imposto só incide na venda ao mercado, quando existe circulação jurídica da mercadoria e receita correspondente

Com a reforma tributária, entretanto, esse arranjo não foi preservado.

O texto aprovado pelo Congresso não trouxe qualquer dispositivo assegurando suspensão geral no IBS para as operações intermediárias de industrialização por encomenda. Isso significa que, pela regra geral, o industrializador estará sujeito à incidência do novo imposto sempre que realizar operação onerosa envolvendo bens e serviços, ainda que os bens sejam de propriedade do encomendante e ainda que não exista circulação econômica final. A lei complementar também não faz distinção entre industrialização própria e industrialização por encomenda, nem delimita a base de cálculo de modo a excluir os insumos pertencentes ao encomendante, o que aumenta a insegurança jurídica.

O mesmo raciocínio se aplica à CBS. A contribuição Federal foi desenhada de forma paralela ao IBS, inclusive com incidência ampla, não cumulatividade plena e crédito financeiro. Como a legislação complementar da CBS também não criou regime de suspensão ou diferimento específico para a industrialização por encomenda, a operação passa a ser tributada simultaneamente pelos dois IVAs. Isso duplica o impacto financeiro da etapa intermediária, cria novos riscos de acúmulo de créditos e potencializa distorções que afetam diretamente o fluxo de caixa das empresas.

O problema central não está na carga tributária final - já que o crédito assegura que o imposto pago será compensado mais adiante -, mas no momento da incidência. No modelo atual, com suspensão do ICMS, não há despesa fiscal antecipada. No modelo IBS/CBS, sem suspensão, o industrializador pagará os tributos antes de haver faturamento do produto pelo encomendante. O crédito existe, mas só será utilizado futuramente, o que transfere para as empresas o ônus financeiro da etapa intermediária. Essa antecipação desorganiza o capital de giro e afeta de maneira mais intensa setores que possuem múltiplas etapas terceirizadas, margens reduzidas ou ciclos produtivos longos.

Outro ponto crítico é a base de cálculo. Como a industrialização por encomenda envolve bens que pertencem ao encomendante, é essencial delimitar a incidência do imposto apenas ao valor agregado pelo industrializador. A lei complementar não fez essa distinção. Sem uma regra clara, abre-se margem para interpretação segundo a qual o IBS e a CBS incidem sobre o valor total da operação, e não apenas sobre a parcela referente ao serviço industrial prestado. Isso gera uma distorção incompatível com a lógica de um IVA, pois tributaria bens que nunca foram comercializados pelo industrializador, violando o próprio conceito de consumo.

A insegurança jurídica resultante dessa lacuna tende a levar o tema ao Judiciário. Se o sistema pretende substituir um ambiente de litígios - marcado por décadas de disputas sobre ICMS versus ISS - por outro mais racional e simples, deixar em aberto a tributação da industrialização por encomenda parece contradizer essa ambição. A falta de clareza normativa é terreno fértil para controvérsias sobre base de cálculo, crédito, momento da incidência e natureza jurídica da operação.

Além disso, a ausência de suspensão pode desestimular a terceirização produtiva. Muitas empresas podem concluir que se torna mais barato internalizar etapas industriais do que arcar com o pagamento antecipado de dois tributos. Isso contraria tendências globais de especialização e reduz a eficiência das cadeias produtivas. O risco é de que a reforma, que tinha como objetivo simplificar e tornar o sistema mais competitivo, acabe estimulando um movimento de verticalização forçada e aumentando os custos sistêmicos da economia.

A situação se torna ainda mais preocupante porque a Constituição permite que a lei complementar estabeleça regimes especiais, inclusive de suspensão e diferimento, mas não obriga o legislador a fazê-lo. Em outras palavras, a omissão da LC 214 não viola a CF de imediato, embora gere efeitos econômicos profundos. Caberá ao Congresso decidir se elaborará uma nova lei complementar para disciplinar a industrialização por encomenda ou se deixará que o regime geral do IVA se imponha, com todas as consequências que isso acarreta.

Nesse contexto, o setor produtivo - que esperava uma transição suave e segura - se vê diante de um cenário marcado por incerteza. A reforma tributária, ao não lidar diretamente com a industrialização por encomenda, criou um vácuo que coloca em risco a tese de que o IVA dual brasileiro será neutro e eficiente. Hoje, a ausência de suspensão tanto no IBS quanto na CBS representa um dos principais pontos de tensão da implementação da reforma. A depender de como o tema evoluir nos próximos meses, esse vácuo pode se tornar um dos fatores mais relevantes na discussão sobre competitividade industrial no país.

A modernização do sistema tributário brasileiro é um avanço inegável, mas sua eficácia dependerá da precisão regulatória. A industrialização por encomenda, pela sua importância estratégica, exige tratamento técnico adequado. Enquanto o legislador não preencher o vazio deixado pela LC 214 e pela legislação da CBS, a indústria brasileira operará sob o risco de reoneração e perda de eficiência. O tema já se apresenta como um dos primeiros grandes testes da reforma tributária e de sua capacidade de promover um ambiente econômico equilibrado, simples e competitivo.

Alonso Santos Alvares

VIP Alonso Santos Alvares

O advogado é sócio da Alvares Advogados, escritório de advocacia especializado nas mais diversas frentes do Direito Empresarial, Civil, Trabalhista e Tributário.

Ricardo Siguematu

Ricardo Siguematu

Advogado especialista em Direito Tributário e é coordenador do núcleo tributário na Alvares Advogados, escritório de advocacia especializado nas mais diversas frentes do Direito Empresarial.

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