Inclusão digital e a democratização da tecnologia: Uma análise jurídica
A inclusão digital é tratada como imperativo jurídico para a cidadania, exigindo políticas públicas, fundamentos constitucionais e adaptação do Direito.
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Atualizado em 15 de dezembro de 2025 14:20
A sociedade contemporânea é inegavelmente marcada pela digitalização e pelo avanço incessante das TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação. Neste cenário, a inclusão digital não se configura apenas como uma política social desejável, mas como um imperativo para a plena realização da cidadania e a efetivação dos direitos fundamentais, demandando uma análise aprofundada sob a ótica jurídica.
O conceito jurídico de inclusão digital
A inclusão digital transcende a mera disponibilização de hardware e acesso à internet. No campo jurídico, ela deve ser entendida e estudada como o processo que busca garantir que indivíduos e comunidades possuam acesso, habilidades e oportunidades para utilizar as tecnologias digitais de forma plena, ética e significativa.
- Acesso à infraestrutura:
Refere-se à garantia de banda larga de qualidade e a dispositivos adequados.
- Letramento digital:
Envolve a capacitação e o desenvolvimento de habilidades necessárias para navegar, interagir e utilizar os recursos online de maneira crítica e segura.
- Participação cidadã:
Diz respeito à possibilidade de o cidadão interagir com serviços públicos digitais (e.g., marcação de consultas, peticionamento eletrônico), exercer o voto e cidadania, participar de debates e ter acesso à informação, essenciais para a democracia.
A exclusão digital, a seu turno, acentua desigualdades preexistentes, criando uma nova forma de marginalização: o so-called "apartheid tecnológico".
O ordenamento jurídico deve pois atuar como ferramenta para desmantelar essa barreira.
Fundamentos constitucionais da democratização tecnológica
Embora a CF/88 não trate expressamente do "direito à internet" ou à "inclusão digital", a sua fundamentação jurídica é extraída de diversos princípios e direitos fundamentais que, por sua natureza, se adaptam à nova realidade tecnológica.
- Dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III): A exclusão do meio digital restringe o desenvolvimento pessoal, profissional e social, ferindo a dignidade. O acesso à tecnologia, hoje, é um meio para o pleno desenvolvimento.
- Direito à educação e à cultura (Art. 205 e 215): A tecnologia é um vetor essencial para o acesso ao conhecimento e à produção cultural. A digitalização do ensino (EAD, plataformas de aprendizado) torna o acesso à tecnologia parte indissociável do direito à educação.
- Livre acesso à informação (Art. 5º, XIV): A internet é o principal canal de difusão de informação na sociedade moderna. Garantir o acesso é fundamental para o exercício deste direito, bem como para a fiscalização de atos públicos e a transparência.
- Direito à participação democrática: A esfera digital tornou-se um palco vital para o debate público e a participação política (Art. 1º, parágrafo único).
Exemplo jurídico: O marco civil da internet (lei 12.965/14) veio regulamentar e estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, colocando a promoção da inclusão digital (Art. 2º, V) como um dos seus fundamentos.
O papel do Estado e as políticas públicas
A democratização da tecnologia exige a atuação proativa do Estado, por meio de políticas públicas que visem à universalização do acesso e à redução da desigualdade.
Universalização da conectividade:
É dever do Estado criar um ambiente regulatório e de investimento que garanta a expansão da banda larga, especialmente em regiões remotas e de baixa renda. A conectividade deve ser vista, à luz da jurisprudência de direitos humanos, como um serviço essencial.
Fomento ao letramento digital:
É de todo crucial que as políticas públicas superem o foco apenas na infraestrutura e invistam em programas de capacitação (e.g., cursos em escolas públicas, bibliotecas digitais) para ensinar o uso eficaz e seguro das ferramentas digitais.
Regulação e acessibilidade: O Estado deve garantir que plataformas e serviços digitais, especialmente os governamentais, sejam desenvolvidos com foco em acessibilidade digital (conforme a lei brasileira de inclusão - lei 13.146/15), eliminando barreiras para pessoas com deficiência, idosos e grupos com menor familiaridade tecnológica.
Desafios e perspectivas para o Direito
A inclusão digital levanta novos desafios para o Direito, exigindo constante adaptação e novos arcabouços regulatórios:
Combate à desinformação:
A democratização da tecnologia deve ser acompanhada por medidas que combatam a disseminação de notícias falsas (fake news), garantindo a qualidade da informação consumida pelos cidadãos e a integridade do debate público.
Proteção de dados:
A LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18) é fundamental para que o cidadão, ao utilizar os serviços digitais, tenha seus direitos de privacidade resguardados, especialmente em um cenário de coleta massiva de dados.
IA - Inteligência Artificial e algoritmos: A inclusão digital deve garantir que o cidadão não seja apenas um consumidor de tecnologia, mas que também compreenda e possa contestar decisões automatizadas baseadas em IA, prevenindo vieses algorítmicos que possam gerar novas formas de discriminação e exclusão.
A inclusão digital e a democratização da tecnologia são, em essência, a extensão dos direitos humanos e fundamentais para o ambiente digital.
Para os operadores de Direito, o tema impõe o dever de olhar para o texto constitucional sob uma ótica tecnológica, para adaptar os princípios clássicos (igualdade, liberdade, dignidade) à realidade da sociedade da informação.
Sem dúvida, o êxito da nossa democracia no século XXI dependerá, em grande medida, da capacidade do Direito de garantir que o acesso e o uso da tecnologia sejam um direito universal, e não um privilégio.
Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade
Migalheira desde abril/2020. Advogada, sócia fundadora do escritório Figueiredo Ferraz Advocacia. Graduação USP, Largo de São Francisco, em 1.981. Mestrado em Direito do Trabalho - USP. Conselheira da OAB/SP. Conselheira do IASP. Diretora da AATSP.



