Temporalidades extremas, judicialização e equilíbrio: Atrasos climáticos exigem nova lente
O aumento de eventos climáticos extremos eleva atrasos e cancelamentos de voos, expondo passageiros à litigância e exigindo critérios claros de força maior.
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Atualizado às 12:49
As manchetes recentes evidenciam que o Brasil entrou na "era dos extremos": chuvas torrenciais, ciclones e tornados vêm se tornando mais frequentes e intensos. Em novembro de 2024, por exemplo, fortes chuvas em São Paulo obrigaram o Aeroporto de Congonhas a cancelar 58 voos em apenas dois dias1. Poucos meses depois, em novembro de 2025, um ciclone extratropical atingiu Santa Catarina e causou restrições de operação no Aeroporto Internacional de Florianópolis, levando ao cancelamento de seis voos e ao atraso de outro2 Na mesma semana, tornados de categoria F3 arrasaram a cidade de Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná: 90 % da área urbana sofreu danos, seis pessoas morreram e os ventos chegaram a 250 km/h3. Mais do que episódios isolados, esses eventos demonstram o impacto imediato do clima no transporte aéreo e a necessidade de priorizar a segurança de passageiros e tripulações.
De crises climáticas aos tribunais
Em um país onde 90 % dos voos chegam no horário previsto e 97 % das operações são efetivamente realizadas (Confira aqui), seria intuitivo esperar índices baixos de reclamações. A realidade é oposta: uma pesquisa com 20 mil operações mostrou que há um processo judicial para cada 362 passageiros brasileiros, enquanto a média de passageiros estrangeiros é de 1 ação para 7.432 passageiros (Confira aqui). O Painel de Demandas Aéreas do CNJ revela que a litigância explodiu: entre 2020 e 2024 o número de novos processos saltou de 123 mil para 356 mil - crescimento de 190 % em quatro anos (Confira aqui). Apenas até maio de 2025 já se contabilizavam 182 mil novas ações, superando o total anual de 2020 (Confira aqui).
Esse volume contrasta com a eficiência operacional e ilustra como a judicialização deixou de ser instrumento de reparação para se tornar modelo de negócio. Muitas plataformas digitais captam consumidores prometendo indenizações automáticas por qualquer atraso ou cancelamento (Confira aqui). O resultado é que fenômenos climáticos naturais - como frentes frias, ciclones e tornados - são tratados na prática judicial como se fossem falhas internas das empresas. A assistência prestada aos passageiros, obrigatória pela resolução 400 da ANAC (que garante comunicação, alimentação, hospedagem e reacomodação após determinados tempos de espera), torna-se insuficiente para afastar a responsabilização civil. Nos tribunais, a tese de que "chuva forte é risco do negócio" ignora o agravamento global dos extremos climáticos.
Clima extremo é fortuito externo
Para que o sistema continue sustentável, é preciso separar assistência de indenização. O Código Brasileiro de Aeronáutica e a jurisprudência internacional reconhecem a força maior como excludente de responsabilidade, exigindo apenas que a companhia comprove ter adotado todas as medidas razoáveis. O regulamento 261/04 da União Europeia, por exemplo, isenta compensações quando eventos extraordinários - como nevascas, vulcões ou tempestades severas - tornam a operação insegura; ainda assim, obriga a reacomodação e o cuidado com os passageiros. Nos Estados Unidos, atrasos causados por acts of God não geram indenização automática, mas implicam reembolso ou alteração de viagem.
Os exemplos brasileiros mostram por que esse caminho é razoável. No caso do ciclone em Florianópolis, os ventos fortes forçaram restrições de pouso e decolagem; a administração do aeroporto recomendou que passageiros procurassem as companhias para reacomodar voos e lembrou que, após uma hora de espera, há direito a comunicação, após duas horas a alimentação e após quatro horas o direito a hospedagem (Visor Noticias). Em São Paulo, o Cemaden - Centro Nacional de Monitoramento de Desastres previu que as tempestades poderiam acumular 100 milímetros de chuva - volume suficiente para causar desastres - e alertou que no Rio de Janeiro os acumulados poderiam chegar a 200 milímetros (Agência Brasil).
Diante desses índices pluviométricos e da possibilidade de enchentes e rajadas de vento, operar aeronaves se torna temerário. Já o tornado no Paraná destruiu 90 % da área urbana de uma cidade e registrou ventos de 250 km/hagenciabrasil.ebc.com.br, fenômeno totalmente fora do controle humano.
Se, mesmo assim, cada atraso gerado por eventos desse tipo resultar em condenação por danos morais, os custos serão repassados a todos os usuários e recursos que deveriam ser investidos em segurança e inovação irão para o pagamento de indenizações. A litigância abusiva também dificulta distinguir entre casos legítimos e fabricados, reduzindo a confiança no Judiciário.
Como o resto do mundo trata as interrupções climáticas?
Uma análise comparativa mostra que outras jurisdições distinguem claramente entre assistência e compensação financeira e consideram que eventos meteorológicos severos podem afastar a indenização, desde que a companhia aja com diligência. A seguir, um panorama dos principais modelos:
União Europeia. O regulamento (CE) 261/044 garante compensação de 250 a 600 euros para atrasos e cancelamentos, mas considera "circunstâncias extraordinárias" - como nuvens de cinzas vulcânicas, tempestades severas, chuva congelante ou nevoeiro denso - como excludentes. Mesmo nesses casos, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia exige que a companhia aérea prove que tomou "todas as medidas razoáveis" para mitigar o evento, como reencaminhar passageiros o mais cedo possível. Se a interrupção decorrer de falta de preparo para condições previsíveis (ex.: ausência de equipamento de degelo), a compensação é devida. Independentemente da causa, as empresas devem fornecer cuidados e assistência (refeições, hospedagem, comunicação) e reacomodação ou reembolso completo.
Estados Unidos. Não há lei federal que obrigue compensação financeira por atrasos causados por "Acts of God" - eventos naturais fora do controle humano - mas o Departamento de Transportes determina que o passageiro tem direito a reembolso integral ou reacomodação quando o voo é cancelado ou significativamente atrasado. As companhias são obrigadas a monitorar o clima e agir com "cuidado razoável", mas refeições ou hospedagem durante atrasos climáticos não são exigidas por lei e dependem da política de cada empresa. O foco norte-americano é na execução contratual (transportar o passageiro ou devolver o valor) em vez de compensar danos morais.
Argentina. O Código Aeronáutico e as normas da ANAC Argentina garantem reencaminhamento, reembolso total e assistência material (refeições, acomodação e transporte) quando o atraso supera 8 horas. A força maior é reconhecida como excludente de responsabilidade, mas as obrigações de assistência e reencaminhamento permanecem. O país, portanto, separa a causa do atraso da obrigação de cuidado com o passageiro.
México. A lei de aviação civil5 e as diretrizes da PROFECO obrigam as companhias a informar os passageiros sobre atrasos e cancelamentos. Para atrasos superiores a 4 horas ou cancelamentos sob responsabilidade da empresa, há direito a reembolso mais 25 % de compensação ou reencaminhamento mais 25 %. Em situações de força maior, o foco é garantir que o passageiro chegue ao destino pelo meio mais rápido, e a compensação adicional de 25 % parece depender de culpa da companhia.
Chile. O Chile aplica a Convenção de Montreal, segundo a qual a transportadora não responde por danos causados por atraso se provar que tomou todas as medidas razoavelmente necessárias ou que foi impossível tomá-las. Mesmo em força maior, os passageiros têm direito de continuar a viagem, mudar de companhia aérea ou obter reembolso, e as empresas devem oferecer comunicação, refeições e acomodação quando necessário. O padrão chileno, alinhado ao europeu, privilegia a demonstração de diligência na mitigação do evento.
Esses modelos mostram que o isolamento brasileiro não deriva da inexistência de proteção ao consumidor, mas da tendência de conceder indenizações morais mesmo em eventos claramente externos. Ao adotar critérios objetivos de força maior e separar assistência de compensação, países como Argentina, Chile, México, Estados Unidos e os membros da União Europeia conseguem proteger os passageiros sem inviabilizar a aviação.
Propostas para um equilíbrio justo
- Fixar critérios objetivos de fortuito externo. É necessário que o STF, ao julgar a repercussão geral da responsabilidade civil das transportadoras aéreas, estabeleça parâmetros que permitam reconhecer condições meteorológicas extremas - ventos acima de determinado índice, acumulados pluviométricos superiores a 100 mm em 24 h ou a ocorrência de tornados/ciclones - como eventos imprevisíveis e inevitáveis. Esses critérios devem basear-se em relatórios de órgãos como o Cemaden, o Inmet - Instituto Nacional de Meteorologia e a Defesa Civil.
- Manter e aprimorar a assistência. A resolução 400 da ANAC já garante direitos materiais aos passageiros independentemente da causa, como comunicados, alimentação e acomodação. Em vez de trocar esse padrão por indenizações morais indiscriminadas, é preciso fiscalizar seu cumprimento e incentivar investimentos em comunicação proativa, aplicativos de gestão de crise e canais de reacomodação em tempo real.
- Combater a litigância predatória. O CNJ e a OAB devem coibir plataformas que buscam lucros com ações em massa, padronizando petições e fatiando demandas6. Ferramentas de inteligência artificial podem auxiliar tribunais a identificar litígios repetitivos, garantindo celeridade aos casos em que há efetiva violação do direito do passageiro.
- Educar o consumidor. Campanhas de esclarecimento sobre direitos e deveres em situações de mau tempo são fundamentais para ajustar expectativas. Explicar que ventos de 250 km/h ou chuvas de 100 mm em poucas horas tornam o voo inseguro ajuda a compreender que a prioridade é a preservação da vida. Ao mesmo tempo, divulgar canais oficiais de atendimento impede que passageiros recorram a "sites abutres" e evita judicializações desnecessárias.
O Brasil vive um paradoxo: tem um dos sistemas de aviação mais pontuais do mundo7, mas também o maior volume de litígios. À medida que os eventos climáticos extremos se intensificam - de frentes frias com chuva acumulada a tornados devastadores - será cada vez mais comum que aeronaves fiquem em solo para preservar a segurança de passageiros, tripulações e do próprio sistema aéreo. Reconhecer juridicamente esses episódios como fortuito externo não significa negar assistência, mas garantir um equilíbrio que proteja consumidores de verdade, desestimule a indústria de processos e preserve a sustentabilidade econômica do transporte aéreo.
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1 https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/chuva-forte-causa-cancelamentos-e-atrasos-voos-no-aeroporto-de-congonhas/
2 https://visornoticias.com.br/fluxo-aereo-e-impactado-pelo-ciclone-e-aeroporto-de-florianopolis-opera-com-restricoes/#:~:text=Fluxo%20a%C3%A9reo%20%C3%A9%20impactado%20pelo,de%20Florian%C3%B3polis%20opera%20com%20restri%C3%A7%C3%B5es
3 https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/meio-ambiente/audio/2025-11/com-ventos-entre-180-e-250-kmh-tornado-deixa-5-mortos-no-parana
4 https://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CONSLEG:2004R0261:20050217:PT:PDF
5 https://www.gob.mx/cms/uploads/attachment/file/659182/Ley_de_Aviacion_Civil.pdf
6 https://www.migalhas.com.br/depeso/443336/litigancia-abusiva-e-os-sites-abutres-na-aviacao-civil
7 https://www.migalhas.com.br/depeso/443336/litigancia-abusiva-e-os-sites-abutres-na-aviacao-civil
Paulo Vinícius de Carvalho Soares
Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. MBA Executivo pelo Insper. Graduado pela Universidade de São Paulo.



