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Estelionato e o vício de consentimento: A fraude empresarial no sistema de franquia

Como o comportamento omisso do Poder Judiciário tem levado ao aumento de fraudes no sistema de franquia e tornado o franchising um terreno fértil para fraudadores e estelionatários.

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Atualizado às 13:25

No âmbito do franchising parasitário, também dito exponencial, a utilização de táticas agressivas de marketing de venda, incluindo a massiva utilização de técnicas conhecidas como gatilhos mentais, surge como relevante e propulsora de "vendas" de franquias. 

Candidatos a franqueados, movidos por sensos de escassez artificialmente produzidos por equipes de vendas de intermediadoras/franqueadoras e desconhecedores de todo o processo de marketing envolvido, são costumeiramente assediados por vendedores com ofertas de descontos nas taxas iniciais de franquia, supostas condições exclusivas de parcelamento e acesso, além de material publicitário apelativo quanto a projeções de investimento e faturamento, retorno de investimento e etc.

Além disso, em casos mais graves, surgem figuras de falsos franqueados ou falsos investidores, plantados para potencializar o senso de urgência e necessidade de fechamento imediato de contratos.

Esses "candidatos" ocultos são dotados da tarefa de confirmar a atratividade do negócio ofertado e, em algumas ocasiões, se colocam como interessado no território objeto de desejo do real candidato, causando uma imaginária disputa que o conduz ao fechamento de contrato ou dispensa imediata de pagamentos em favor de franqueadores/intermediadores.

É certo, ainda, que esse contexto fraudulento vem, na maior parte das vezes, acompanhado de induzimento à pré-datação do termo de recebimento da COF - Circular de Oferta de Franquia, uma vez que as técnicas de venda lastreadas em gatilhos mentais somente funcionam quando o candidato a franqueado é cerceado em seu direito de reflexão previsto na lei de franquias. 

Convém apontar, ainda, que as técnicas aqui descritas costumam ser utilizadas em um contexto de fraude empresarial, sendo o sistema de franchising utilizado como mero mecanismo de captação ilícita de recursos financeiros. Bem por isso, os modelos de negócio ofertados são de inviável implementação econômica e sem histórico de validação mercadológica e, portanto, sequer deveriam se apresentar ao mercado como replicável.

Mais que isso, a utilização de marketing agressivo para arregimentação de franqueados, está associada a um contexto de omissões maiores na própria COF - Circular de Oferta de Franquia.

A omissão de lista de franqueados e ex-franqueados, ou sua apresentação incompleta (em lista única, links externos ou sem as informações obrigatórias: nome, endereço e telefone) é uma característica comum nesse contexto fraudulento, além do impulsionamento e apresentação de materiais publicitários que subavaliam custos de implantação e estipulam faturamentos e margens irreais de faturamento e retorno do investimento.

Por sua vez, os contratos de adesão vinculados a este perfil de fraude são, ordinariamente, revestidos de cláusulas que promovem, a um só tempo, blindagem jurisdicional ao franqueador e o completo silenciamento do franqueado em um verdadeiro contexto de manipulação jurídica pautada em abuso de posição dominante para impedir qualquer reação das vítimas desse perfil de golpe.

Estes contratos carregam cláusula compromissória, com eleição de câmaras arbitrais cujos custos são inacessíveis ao franqueado e que podem chegar a centenas de milhares de reais. Além disso, contam com multas rescisórias que chegam a cifras milionárias e são apresentadas ao franqueado sempre que há questionamento quanto à higidez do modelo de negócio vendido.

Em muitos casos, é possível encontrar cláusulas contratuais de silenciamento, que impedem ou condicionam à autorização do franqueador a criação de movimentos associativos ou, ainda, a simples criação de grupos de franqueados para discussão acerca da rede de franquia. Em casos extremos, até mesmo a comunicação entre franqueados é proibida e sujeita a multas de cifras relevantes.

Como se vê, há todo um conjunto de sofisticadas técnicas de venda e manipulação jurídica que permite não apenas o crescimento desse perfil de fraude no sistema de franquia; mas, ainda, a sua perpetuação, uma vez que barreiras como multas abusivas e cláusulas arbitrais, associadas à hipossuficiência do franqueado, que, na maior parte das vezes, é conduzido a um cenário de insolvência civil justamente pela inviabilidade do modelo de negócio ofertado, são silenciados e impossibilitados de reagir.

No cenário criminal, é fácil perceber que estamos diante das figuras elencadas no art. 299 (falso) e 171 (estelionato), ambos do CP. Porém, esse perfil de fraude empresarial tem sido de difícil reconhecimento pelo Poder Judiciário, que ainda persiste na crença de que se está diante de mero negócio jurídico estabelecido entre dois supostos empresários em pé de igualdade.

Mesmo na seara cível, é importante que se destaque que estamos diante de figuras típicas enquadráveis como vícios de consentimento. O dolo, o erro e a coação são figuras bastante notórias e o seu reconhecimento pode ser pleiteado no contexto de fraudes empresariais aqui retratadas.

Isso porque a manifestação de vontade do franqueado está viciada por fatores que eliminam a reflexão e sua liberdade de escolha. Uma decisão apressada, sob pressão psicológica ou com base em informações falsas e incompletas deve, pois, encerrar decreto de nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico.

O franchising parasitário ou exponencial, mediante técnicas agressivas de marketing de venda, explora a vulnerabilidade do candidato a franqueado, mediante ardis e exploração de gatilhos mentais para levar à sua aderência ao sistema de franquia que, em si, se mostra como empreendimento natimorto do ponto de vista econômico. 

A inviabilidade do modelo de negócio proposto, contudo, é costumeiramente camuflada por estratégias de marketing agressivas, irreais planos de negócio, falsos estudos de viabilidade comercial e geomarketing e, ainda, dados acerca da atratividade do território desejado que não encontram respaldo em dados oficiais ou estudos mais apurados.

O objetivo de todo candidato a franqueado é aderir a um modelo de negócio em tese testado e replicável, com viabilidade econômica e efetivas condições de promover retorno de seu investimento inicial. 

Contudo, nos modelos de negócio veiculados através de táticas agressivas de marketing, o que se vê é uma conjuntura de arrecadação de valores em prol do franqueador/intermediador, que, muitas vezes, se estende para o campo de retenção de valores futuros a títulos de multas contratuais, acompanhados de estrutura de royalties e taxas fixas que drenam o franqueado financeiramente, aprisionando-o em uma relação jurídica abusiva e fraudulenta.

O candidato a franqueado que adere a um negócio mediante pressão psicológica ou após ser atraído por técnicas de venda e gatilhos mentais é induzido a erro e acaba por celebrar um contrato mediante erro substancial, notadamente quanto ao seu objeto, de modo a provocar a anulabilidade deste instrumento.

O erro substancial também se manifesta por falta de informação, uma vez que a perpetração de fraude mediante omissões dolosas de informações obrigatórias na COF - Circular de Oferta de Franquia priva o candidato a franqueado de informações cruciais, que levariam a uma decisão diferente se conhecidas, o que também configura vício de consentimento.

Demais disso, restando comprovado que o franqueado aderiu ao contrato de franquia mediante contexto de pressão psicológica, caracterizadora de coação moral, é certo que a decisão se torna não refletiva, sendo hábil, também, a provocar a anulação do negócio jurídico, uma vez que o franqueado não teve condição de expressar livremente sua vontade.

Especificamente quanto à utilização de gatilhos mentais e pressão psicológica, convém trazer à discussão decisão recente do juízo da 4.ª Vara Cível da Comarca de Sorocaba/SP (PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL 4011553-42.2025.8.26.0602/SP), que, acolhendo argumentos do franqueado requerente, entendeu pela verossimilhança das alegações e suspendeu, liminarmente, qualquer cobrança relacionada ao instrumento contratual firmado entre as partes:

DESPACHO/DECISÃO

Vistos.

Defiro ao autor os benefícios da justiça gratuita. Anote-se.

Alega o autor que a conduta da requerida se amolda a um padrão de marketing agressivo e predatório, que visa suprimir a capacidade de análise crítica da parte e forçar um fechamento de contrato impulsivo.

Diz que foi bombardeado com "gatilhos de urgência e escassez", acabando por fechar o contrato, entretanto, em menos de 48 horas após a celebração do negócio, comunicou formalmente aos prepostos da requerida seu desejo de não prosseguir, solicitando o cancelamento do contrato e a devolução do valor investido. Houve negativa da ré.

Assim, requer o autor a tutela de urgência de natureza cautelar, nos termos do art. 300 do CPC, para determinar que a requerida se abstenha imediatamente de praticar qualquer ato de cobrança, judicial ou extrajudicial, e de inscrever o seu nome e CPF em quaisquer cadastros de proteção ao crédito (SPC, Serasa etc.), em relação ao contrato de franquia em discussão, sob pena de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), confirmando-se a medida em sentença definitiva.

Pois bem.

Diante dos argumentos do autor e considerando a aparência da verossimilhança diante dos documentos apresentados, notadamente histórico das mensagens trocadas entre as partes via whatsapp, reputo presentes os requisitos da pretendida tutela de urgência (art. 300, do CPC), que defiro, para o fim de determinar aos órgãos de proteção ao crédito (SCPC e SERASA) que se abstenham ou suspendam os apontamentos referentes ao débito envolvendo o contrato de franquia em discussão (documento 8 do evento 1), suspendendo os seus efeitos até ulterior decisão, oficiando-se, sob pena de multa de R$ 1.000,00 por ato de cobrança realizado, limitada a R$ 10.000,00 em caso de descumprimento.

(...)

Como se vê, a discussão acerca da utilização de técnicas agressivas de marketing no contexto das relações de franquia é ainda recente. O Poder Judiciário ainda tem se mostrado tímido em promover correta distinção entre o que é, de fato, uma discussão acerca de inadimplemento contratual e o que, por outro lado, revela a utilização fraudulenta do sistema de franquia, com o propósito escuso de lesar quantidade relevante de franqueados e arregimentar valores de terceiros através de técnicas e ardis compatíveis com o crime de estelionato.

O combate a esse perfil de fraude no sistema de franquia, bem assim o seu reconhecimento pelo Poder Judiciário é de extrema importância, sobretudo diante do elevado aumento de golpes com esse perfil. 

A postura silenciosa e distante, por outro lado, tem levado a um cenário em que o sistema de franchising se coloca como um terreno fértil para fraudadores que se utilizam das próprias amarras e verdades imutáveis do sistema para fazer cada vez mais vítimas, desfalecendo um sistema que possui extrema relevância para a economia brasileira.

David Maxsuel

VIP David Maxsuel

Sócio-fundador da M&R Advogados, banca de advocacia voltada à atuação exclusiva em favor de franqueados. Diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Franqueados (ASBRAF).

Maria Rodrigues

Maria Rodrigues

CEO da Maxsuel & Rodrigues Advogados, banca de advocacia especializada na Defesa exclusiva de franqueados e ex-franqueados em todo o país. Especialista em franchising.

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