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Aposentadoria por invalidez do servidor público: A perda de uma chance

Análise da dupla penalização do servidor com doença ocupacional: da perda de uma chance ao dano existencial, as estratégias de revisão pós-reforma e o Tema 1.300 do STF.

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Atualizado às 13:52

1. Introdução

A estabilidade no serviço público, embora seja um pilar de garantia, não blinda o servidor contra os infortúnios que podem emanar do próprio ambiente laboral. A doença ocupacional ou o acidente de trabalho representam uma violação profunda dos direitos do trabalhador, cujas consequências se estendem para além da incapacidade laborativa, atingindo o cerne de sua existência, seus projetos de vida e sua segurança financeira.

Este artigo propõe uma análise aprofundada da dupla penalização imposta ao servidor: a perda de uma chance de ascensão profissional com a consequente perda financeira em seus proventos e, de forma crucial, o dano existencial, que se manifesta na frustração do projeto de vida e na violação da dignidade. Defende-se que esses danos, embora interligados, são autônomos e cumuláveis, exigindo uma reparação integral por parte do Estado, mesmo que a norma que os causa seja constitucionalmente válida.

A estabilidade, longe de ser um privilégio, é um dever-poder conferido ao servidor para o exercício impessoal de suas funções; todavia, ela se torna uma "armadilha de cristal" quando o Estado negligencia a higidez do meio ambiente de trabalho. Ao adoecer o servidor, a Administração Pública não apenas compromete a eficiência do serviço, mas rompe o pacto de confiança que sustenta o regime estatutário. A patologia laboral, portanto, transmuda a relação jurídica de amparo em uma relação de dano, onde o agente público passa a ser refém de uma estrutura que deveria, por mandamento constitucional, protegê-lo.

Neste cenário, a análise não deve se limitar à higidez do benefício previdenciário em si, mas ao impacto colateral das novas regras estruturais. Embora a EC 103/19 preserve a alíquota de 100% para casos acidentários, a nova sistemática de apuração da média aritmética , que agora abrange todo o período contributivo sem exclusões, pode achatar o valor final do benefício se comparado à trajetória de ascensão que o servidor teria em atividade. Esse "congelamento" prematuro da média, causado pelo ilícito estatal (a doença), configura uma perda patrimonial indireta que justifica a investigação da responsabilidade civil sob o prisma da justiça corretiva.

É preciso considerar que a aposentadoria por incapacidade, ainda que integral, interrompe definitivamente o acesso do servidor a vantagens pecuniárias variáveis, adicionais de desempenho e, principalmente, às futuras promoções que elevariam seu patamar remuneratório e, consequentemente, sua base de cálculo previdenciária. A penalização, portanto, não reside apenas na regra de cálculo do benefício, mas na retirada forçada do servidor de um plano de carreira que lhe garantiria uma situação financeira muito mais robusta do que o benefício de "aposentadoria-teto" atual.

Por fim, a autonomia entre a perda de uma chance e o dano existencial constitui o eixo central desta tese. Enquanto a primeira olha para o "vir-a-ser" profissional e a legítima expectativa de ganho que foi estancada, o segundo volta-se para a dor do presente e a falência do plano de vida extrapatrimonial. Reconhecer a cumulatividade dessas indenizações é garantir que a reparação seja, de fato, integral, impedindo que o Estado utilize o pagamento do benefício previdenciário como um "escudo" para não indenizar os danos biográficos e de carreira que sua omissão causou.

2. A teoria da perda de uma chance e sua aplicação

A teoria da "perda de uma chance" (perte d'une chance) indeniza a eliminação de uma oportunidade séria e real de obter uma vantagem ou evitar um prejuízo. Conforme consolidado pelo STJ, não se repara o resultado final perdido, mas a probabilidade de alcançá-lo. Para o servidor com doença ocupacional, isso se traduz na perda concreta de oportunidades de promoções, concursos e outras formas de progressão na carreira, um dano de natureza prospectiva que deve ser mensurado com base nas probabilidades de sucesso que o servidor detinha.

A omissão do Estado em garantir um ambiente de trabalho seguro, que resulta na doença ocupacional, é o ato ilícito que causa essa perda de chance. O servidor que, saudável, teria participado de um concurso de promoção com alta probabilidade de êxito, vê-se impossibilitado de fazê-lo. Essa frustração de expectativa legítima é reparável, independentemente de outras consequências que a doença possa ter causado.

A aplicação da perda de uma chance no serviço público exige uma distinção clara entre o dano emergente (a doença em si) e o dano de natureza aleatória. Enquanto o primeiro foca na integridade física, a perda de uma chance debruça-se sobre a interrupção da trajetória profissional. Ao ser acometido por uma patologia laboral, o servidor não perde apenas a saúde; ele é retirado de uma "corrida" meritocrática cujas etapas de progressão são, muitas vezes, predeterminadas por estatutos e cronogramas de concursos internos, tornando a chance não apenas "possível", mas estatisticamente provável.

Nesse sentido, o trecho do precedente do STJ é bem didático: " Esta teoria tem sido admitida não só no âmbito das relações privadas stricto sensu, mas também em sede de responsabilidade civil do Estado. Isso porque, embora haja delineamentos específicos no que tange à interpretação do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, é certo que o ente público também está obrigado à reparação quando, por sua conduta ou omissão, provoca a perda de uma chance do cidadão de gozar de determinado benefício(STJ - RESPA: 1.308.719/MG 2011/0240532-2, Relator.: ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 25/6/2013, T2 - 2ª turma, Data de publicação: DJe 1/7/2013, grifou-se).

Nesse contexto, a responsabilidade civil do Estado assume um contorno de omissão específica. O dever de zelo pelo ambiente de trabalho é uma obrigação de meio que, uma vez descumprida, desencadeia um nexo causal direto com a frustração do projeto de vida do servidor. A doença ocupacional atua como um "pedágio existencial" involuntário, bloqueando o acesso a patamares remuneratórios superiores que seriam alcançados mediante o fluxo natural da carreira administrativa.

É preciso destacar que a mensuração dessa indenização não deve ser integral ao benefício perdido, mas proporcional ao coeficiente de probabilidade. O STJ tem reiterado que o juiz deve se pautar pela lógica do razoável: se o servidor apresentava um histórico de produtividade exemplar e preenchia os requisitos objetivos para a próxima promoção, a sua "chance" deixa de ser uma mera esperança subjetiva e passa a ser um ativo jurídico economicamente apreciável.

Somando-se a isso, emerge o dano existencial previdenciário. Quando a doença ocupacional empurra o servidor para uma aposentadoria por incapacidade precoce ou para uma readaptação limitante, ocorre uma ruptura drástica em seu projeto de vida. O tempo, antes dedicado à evolução intelectual e profissional, passa a ser consumido por processos burocráticos de perícias médicas e tratamentos paliativos, configurando um dano que transborda a esfera financeira para atingir a dignidade da pessoa humana.

Configura-se, assim, a primeira penalização: o sofrimento físico e psíquico decorrente da patologia adquirida no exercício da função. O servidor é submetido a uma dor que poderia ter sido evitada caso as normas de segurança e medicina do trabalho tivessem sido rigorosamente observadas pela Administração Pública, que, em busca de eficiência ou por negligência, precariza as condições laborais.

A segunda penalização manifesta-se no plano jurídico-funcional através da perda de uma chance. Ao ser retirado do fluxo de promoções, o servidor sofre um "congelamento" na carreira. Enquanto seus pares evoluem e alcançam o topo da pirâmide administrativa, o servidor doente permanece estagnado, assistindo à obsolescência de sua formação e ao esvaziamento de suas perspectivas de liderança e reconhecimento.

Portanto, a dupla penalização cria um ciclo de vulnerabilidade absoluta. A teoria da perda de uma chance serve como um mecanismo de justiça corretiva, buscando compensar o que o sistema administrativo e previdenciário agora ignora. Indenizar a chance perdida é reconhecer que o Estado, ao falhar como empregador, não pode se eximir das consequências patrimoniais que sua omissão gerou na vida funcional do agente.

A análise conjunta desses institutos revela que o dano sofrido pelo servidor com doença ocupacional é multidimensional. Não se resolve apenas com auxílio-saúde ou licenças médicas. Exige-se uma reparação que contemple a frustração do amanhã, o esvaziamento do presente e o rigor imposto pelas novas regras constitucionais, garantindo que o princípio da dignidade do trabalho não seja sacrificado no altar das reformas administrativas.

A viabilidade prática da pretensão indenizatória pela perda de uma chance exige que o autor demonstre o nexo de causalidade entre a patologia e a interrupção da trajetória funcional. Doutrinariamente, autores como Sérgio Savi defendem que a chance deve ser "séria e real", o que, no caso do servidor público, é evidenciado através do histórico de avaliações de desempenho, editais de concursos internos e cronogramas de progressão previstos em leis específicas de carreira. O Poder Judiciário não julga uma certeza de ganho, mas a subtração culposa de uma oportunidade que já integrava o patrimônio moral e profissional do agente.

No plano jurisprudencial, o STJ (REsp 1.190.180/RS) consolidou o entendimento de que a técnica de reparação deve ser pautada pela probabilidade. Para o servidor, isso implica que a petição inicial deve ser instruída com um "dossiê de carreira", contendo as fichas financeiras que demonstram o salto remuneratório que seria obtido na promoção frustrada. Não se pleiteia o valor total da diferença salarial como se o cargo tivesse sido ocupado, mas um percentual sobre esse valor, correspondente à chance estatística de êxito que o servidor detinha antes do adoecimento.

A prova documental é o primeiro pilar do êxito judicial. É indispensável apresentar o NTEP - Nexo Técnico Epidemiológico ou o laudo de nexo causal emitido pela junta médica oficial, além de cópias de editais de progressão e listas de classificação de anos anteriores. Esses documentos servem para retirar a alegação do campo das suposições e inseri-la no campo das realidades administrativas, demonstrando que, não fosse a incapacidade gerada pelo ambiente de trabalho insalubre, o servidor estaria apto a concorrer e, provavelmente, ascender.

Todavia, a prova rainha nestas ações é a perícia médica judicial, que deve possuir caráter biopsicossocial. Não basta ao perito atestar a doença; ele deve ser instado a responder quesitos específicos sobre a capacidade laborativa residual. É neste ponto que a atuação de um advogado especialista em Direito Previdenciário e Administrativo se torna vital: o profissional saberá formular quesitos que obriguem o perito a declarar se a doença impede, especificamente, as atividades exigidas para a promoção na carreira e se há possibilidade de readaptação, inclusive.

Complementando a perícia, a figura do assistente técnico pericial surge como um diferencial estratégico muitas vezes negligenciado. Enquanto o perito do juízo é, em tese, imparcial, o assistente técnico é o profissional de confiança que garantirá que a análise médica não seja meramente clínica, mas ocupacional. Ele terá o condão de fiscalizar o exame, oferecer pareceres fundamentados e contestar eventuais conclusões genéricas que ignorem as peculiaridades da carreira pública e o impacto da EC 103/19 na vida do periciado.

A doutrina de Flávio Tartuce reforça que a perda de uma chance é uma categoria autônoma de dano. Aplicada ao servidor público, essa autonomia permite cumular o pedido indenizatório com o Dano Existencial. Enquanto a perda de uma chance foca no aspecto econômico-profissional futuro, o dano existencial foca na destruição da rotina e dos projetos de vida atuais. A petição deve, portanto, separar claramente essas esferas para evitar o bis in idem e maximizar o potencial de reparação.

A necessidade de um advogado especialista reside na capacidade de interpretar o RJU - Regime Jurídico Único e as leis de carreira à luz da Constituição Federal. O manejo inadequado da ação, sem a correta delimitação do "quantum" da chance, pode levar à improcedência por ser considerada "mera expectativa". O especialista saberá traduzir o sofrimento do servidor em termos de perda de capital humano, um conceito que ganha força no Direito Civil moderno e que deve ser central na sua tese.

Em suma, a judicialização da tríplice penalização não é apenas uma busca por valores financeiros; é um ato de resistência jurídica contra a precarização do serviço público. A documentação robusta, aliada a uma perícia técnica assistida e uma fundamentação baseada na doutrina da responsabilidade civil objetiva do Estado (art. 37, §6º da CF), forma o tripé necessário para que o Judiciário reconheça que o servidor doente não é um "custo", mas uma vítima de um sistema que falhou em sua proteção básica.

Leia o artigo na íntegra.

Alan da Costa Macedo

VIP Alan da Costa Macedo

Doutorando em D. Trab e Seguridade Social na USP. Mestre em Direito Público, Especialista em D. Constitucional, Previdenciario, Processual e Penal. Coordenador Científico do IPEDIS.

Fernanda Carvalho Campos e Macedo

VIP Fernanda Carvalho Campos e Macedo

Advogada fundadora do CC&M Advogados; Presidente do IPEDIS; Especialista em D. Público, do Trabalho e Previdenciário; Prof. em cursos de Pós Graduação.

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