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Suspensão cautelar da norma no STJ e os limites da força executiva do título

Se a base legal do título foi cautelarmente suspensa pelo STF, é coerente expropriar? Uma análise crítica dos arts. 525 e 535 do CPC, do Tema 100 e da ADPF 615.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Atualizado às 14:24

A questão proposta para o debate é a seguinte:

Se o STF decide suspender cautelarmente a eficácia de uma lei em ADI, ADC ou ADPF, é possível que um juiz continue exigindo o cumprimento de um título judicial que repousa exatamente nessa lei? Executa-se em nome da coisa julgada, mesmo quando o próprio STF já sinalizou que a base normativa do título tem probabilidade de ser declarada inconstitucional?

Essa é uma questão de elevada complexidade, porquanto envolve a tensão entre a autoridade da coisa julgada, prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição, e a supremacia da Constituição, expressa no art. 102, caput, também da Constituição, manifestada em uma decisão, ainda provisória, de suspensão da norma em sede de controle concentrado.

1. O status do título judicial e a inexigibilidade

O CPC de 2015 previu expressamente a chamada coisa julgada inconstitucional. O art. 525, § 12, e o art. 535, § 5º, estabelecem que a obrigação é inexigível quando fundada em lei declarada inconstitucional ou em interpretação considerada incompatível com a Constituição pelo STF.

A leitura sistemática desses dispositivos com os §§ 14 e 15 conduz a uma distinção relevante. Se a decisão de inconstitucionalidade for anterior ao trânsito em julgado, a matéria pode ser arguida na própria impugnação ao cumprimento de sentença. Se for posterior, a via adequada será, em regra, a ação rescisória.

A medida cautelar em sede de controle de constitucionalidade, todavia, não se confunde com a decisão de mérito. Ao concedê-la, o STF realiza um juízo de probabilidade, mas não afirma, de modo definitivo, a inconstitucionalidade da norma. Por isso, sob uma leitura estritamente literal, a cautelar não gera, por si só, a inexigibilidade automática do título nos termos do art. 525, § 12.

O problema é que essa leitura formal ignora as consequências da decisão cautelar e desloca a execução para um terreno de indiferença em relação ao próprio controle de constitucionalidade.

2. A suspensão judicial da execução (ope iudicis).

Ainda que o título permaneça formalmente exigível, o executado pode pleitear a suspensão da execução com fundamento no art. 525, § 6º, do CPC. O dispositivo autoriza o juiz a atribuir efeito suspensivo à impugnação quando estiverem presentes três requisitos: (i) relevância dos fundamentos, (ii) risco de dano grave de difícil ou incerta reparação e a (iii) garantia do juízo.

O saudoso ministro Teori Zavascki1, ensina que as medidas liminares no controle concentrado transcendem a mera precaução processual, possuindo natureza marcadamente antecipatória, uma vez que adiantam provisoriamente os efeitos executivos da sentença definitiva para evitar o perecimento do direito ou a ineficácia da decisão final.

Logo, a concessão da tutela de urgência pelo STF pressupõe, invariavelmente, a demonstração da relevância dos fundamentos (fumus boni iuris) e o risco decorrente da manutenção da eficácia do preceito impugnado (periculum in mora), configurando um juízo preliminar de alta densidade sobre a invalidade da norma.

Nesse contexto, a decisão da Corte Suprema não apenas sinaliza a plausibilidade jurídica da inconstitucionalidade, mas efetivamente suspende a vigência do ato normativo (ou impõe a sua aplicação, no caso da ADCO, retirando-lhe (ou confirmando-lhe) a aptidão para produzir efeitos no mundo jurídico enquanto perdurar a medida, o que reforça a presença da probabilidade do direito necessária para a suspensão de execuções em curso. Ora, se a cautelar do STF paralisa a eficácia abstrata da norma, esse elemento, por si só, configura um fumus boni iuris de altíssima intensidade, que não pode ser tratado como juridicamente irrelevante pelo magistrado da execução.

O prosseguimento da execução, nesse cenário, produziria risco concreto de dano de difícil reparação. É claro que no cumprimento provisório da sentença, o art. 520, II, do CPC prevê a restituição ao status quo ante em caso de reforma da decisão. Todavia, no cumprimento definitivo, a satisfação da obrigação ocorre sob a proteção da coisa julgada, e, uma vez consumada a expropriação patrimonial, a recomposição integral é inviável2.

3. O Tema 100, a ADPF 615 e a relativização qualificada da coisa julgado

O presente debate não pode ser enfrentado sem referência à evolução jurisprudencial do STF, notadamente o Tema 100 da repercussão geral e, mais recentemente, o julgamento da ADPF 615/DF.

No precedente do Tema 100 (RE 586.068/PR), o STF já havia reconhecido a possibilidade de desconstituição de títulos judiciais transitados em julgado quando fundados em normas posteriormente declaradas inconstitucionais.

Agora, com o julgamento da ADPF 615, diante da vedação à ação rescisória nos Juizados, o STF admitiu o manejo de simples petição na fase de execução, a ser apresentada em prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF.

Agora, se o próprio STF admite a ruptura da coisa julgada, autorizando até mesmo o uso de simples petição nos Juizados para derrubar sentenças transitadas em julgado, parece ainda mais coerente admitir, ao menos, a suspensão da eficácia executiva do título quando a constitucionalidade da norma aplicada já se encontra seriamente comprometida por decisão cautelar do próprio Tribunal. Uma decisão cautelar não tem força para, por si só, romper a estabilidade do título judicial, e a suspensão da execução deve, de fato, ser medida excepcional.

Também é possível cogitar a modulação dos efeitos pelo STF, nos termos do art. 525, § 13, do CPC.

O art. 927, § 3º do CPC/15 prevê a hipótese de modulação dos efeitos na alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos em prol do interesse social e da segurança jurídica. A previsão legislativa encontra amparo e justificativa na necessidade de proteção da confiança, elemento essencial da segurança jurídica.

Contudo, não se pode confundir a necessidade de adaptação do direito às mudanças sociais ou eventual correção de erro com alteração de entendimento e opinião dos julgadores em função da mudança de composição de magistrados do tribunal3.

A respeito da modulação de efeitos da alteração de tese jurídica, prevista no art. 927, § 3º do CPC/15, ensina o professor Araken de Assis4:

O ideal é que a revisão surta efeitos ex nunc, preservando a aplicação pretérita da tese jurídica. Do contrário, ao invés de conter múltiplos processos o precedente revisado se prestaria a multiplica-los, porque o vencido, segundo a tese anterior, buscaria rever o julgado desfavorável por um dos meios processuais porventura cabíveis.

Na própria ADPF 615, o Supremo reafirmou que poderá modular os efeitos temporais de seus precedentes, estabelecendo a extensão da retroatividade ou até mesmo o não cabimento da desconstituição diante de grave risco à segurança jurídica. Contudo, transferir todo o risco para o executado, obrigando-o a pagar uma dívida fundada em lei cautelarmente suspensa pelo STF, cria um paradoxo, uma vez que o Judiciário, em uma ponta (STF), diz que a lei provavelmente é inconstitucional e não deve produzir efeitos; na outra ponta (juízo da execução), o mesmo Judiciário utiliza a coação estatal para materializar os efeitos dessa mesma lei, sob o manto da coisa julgada.

Considerando que a nova orientação do STF (ADPF 615 e Tema 360) permite a desconstituição do julgado mesmo que a declaração de inconstitucionalidade seja posterior ao trânsito em julgado, permitir a expropriação patrimonial imediata pode gerar um cenário de irreversibilidade prática indesejada.

Logo, tendo o STF suspendido cautelarmente a eficácia da norma que serviu de fundamento para formação de um título executivo judicial, é juridicamente coerente que a execução prossiga em seus atos ordinários, como se inexistisse essa suspensão?

Fica a questão.

_________

1 ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das liminares nas ações de controle concentrado de constitucionalidade. Revista de Processo, n. 98, p. 275-294, abr./jun. de 2000. pág. 14.

2 Sobre o tema do cumprimento provisório: WELSCH, G. M.; MIGLIAVACCA, Carolina Moraes . Do cumprimento provisório da sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa ? Arts. 520 A 522 CPC/15. In: Araken de Assis; Gilberto Gomes Bruschi. (Org.). Processo de Execução e Cumprimento da Sentença. 1ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, v. 1, p. 331-347.

3 ARRUDA ALVIM, Teresa. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. E-book. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2019, PAGE RB - 7.1.

4 ASSIS, Araken. Manual dos Recursos, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 469.

5 Sobre o tema, indispensável a ponderação sobre a coisa julgada inconstitucional, que apresenta o conflito entre a segurança jurídica e a supremacia da Constituição: WELSCH, Gisele. A Coisa Julgada Inconstitucional ISSN-0103-3379. REVISTA JURIDICA (PORTO ALEGRE. 1953), v. 364, p. 63-95, 2008.

Manasses Lopes

VIP Manasses Lopes

Advogado e professor universitário. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília.

Gisele Welsch

Gisele Welsch

Pós-doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha). Doutora e Mestre em Teoria da Jurisdição e Processo pela PUC-RS. Especialista em Direito Público pela PUC-RS. Professora de cursos de graduação e pós-graduação "lato sensu" em Processo Civil. Advogada e parecerista.

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