ADIn 3/25: O que muda na atuação da Receita Federal diante de mercadorias com indícios de contrafação de marca
O ato uniformiza a atuação aduaneira, distinguindo riscos públicos de violações privadas e reforçando a segurança jurídica.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2025
Atualizado às 07:16
As discussões sobre a atuação aduaneira diante de mercadorias com indícios de contrafação de marca estão longe de ser recentes. Durante anos, as unidades da Receita Federal adotaram práticas distintas, enquanto tribunais federais também divergiam quanto aos limites entre a simples retenção da mercadoria, a necessidade de provocação do titular da marca e a possibilidade de aplicação da pena de perdimento. Essa assimetria gerou insegurança jurídica e levou entidades especializadas, como a ABPI - Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, a reivindicarem maior previsibilidade e uniformidade nos procedimentos de combate à contrafação.
É nesse contexto que se insere o ADIn RFB 3, de 3 de dezembro de 2025, que parte de uma premissa fundamental: a contrafação de marca, isoladamente considerada, continua submetida ao procedimento previsto nos arts. 605 a 608 do Regulamento Aduaneiro. Trata-se do rito que envolve a retenção da mercadoria, a comunicação ao titular da marca e, se for o caso, a adoção de medidas judiciais, em um cenário voltado predominantemente à tutela de interesses privados.
A principal inovação do ADIn não está em alterar esse regime, mas em explicitar quando a infração marcária ultrapassa a esfera privada e passa a assumir relevância de direito público. O Ato identifica situações em que a mercadoria contrafeita pode afetar valores como a saúde e a segurança da população, o meio ambiente, a defesa do consumidor, a concorrência leal e a própria ordem pública. Nessas hipóteses, o fundamento jurídico da atuação aduaneira deixa de ser o uso indevido da marca em si e passa a residir nos dispositivos clássicos do direito aduaneiro sancionador, especialmente o art. 105 do decreto-lei 37/1966 e o arti. 689 do Regulamento Aduaneiro, que autorizam a pena de perdimento.
Essa distinção conceitual ajuda a compreender a diretriz interpretativa adotada pelo ADIn RFB 3/25, qual seja: mesmo diante da inércia do titular da marca, o auditor-fiscal pode requisitar, de plano, provas iniciais ou informações técnicas que auxiliem na avaliação de eventual risco público associado à mercadoria. O titular deixa de ser elemento condicionante da continuidade da atuação administrativa e passa a exercer um papel probatório relevante, como fonte de evidências técnicas. A decisão final, contudo, permanece ancorada no poder de polícia aduaneiro e na proteção de interesses difusos, e não na tutela direta de um direito marcário individual.
É justamente essa delimitação que afasta qualquer conflito com o Acordo TRIPS - o Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), firmado no âmbito da Organização Mundial do Comércio. O ADIn deixa claro que a atuação da Receita Federal, nessas hipóteses, não tem por objetivo solucionar disputas privadas de propriedade intelectual (atribuição que continua reservada aos titulares e ao Poder Judiciário), tratando-se, em verdade, de uma intervenção administrativa voltada à mitigação de riscos concretos à economia, à segurança, ao consumidor e à coletividade.
A jurisprudência já vinha sinalizando essa separação de planos. Quando a irregularidade se limita à violação de direito marcário, sem outros elementos agravantes, o TRF da 4ª região afastou a aplicação do perdimento, entendendo ser inviável essa sanção, por exemplo, "quando a infração se limita ao uso da marca" (ApelRemNec 5051173-77.2020.4.04.7000, j. 21/11/2024). Em sentido oposto, quando estão presentes falsidade documental, adulteração de características essenciais ou risco ao consumidor, os tribunais têm confirmado a pena de perdimento. Casos emblemáticos, como o conhecido precedente envolvendo baterias contrafeitas ("Notebattery" - TRF4, ApCiv 5009843-92.2019.4.04.7208), bem como julgados do TRF da 5ª Região (ApCiv 0810256-48.2020.4.05.8000), reconhecem a natureza pública da infração e a legitimidade da atuação aduaneira mais severa.
Do ponto de vista da Propriedade Intelectual, o ADIn RFB 3/25 traz reflexos relevantes, ainda que pontuais. Ao reforçar a previsibilidade das medidas de fronteira, o ato contribui para a efetividade da proteção marcária e a eficiência do combate à pirataria, ao contrabando e à concorrência desleal, resguardando o mercado interno. Para os titulares de direitos, isso reduz incertezas e fortalece a cooperação com a autoridade aduaneira, na medida em que delimita com maior precisão o seu papel - não como protagonista exclusivo da repressão, mas como agente técnico capaz de colaborar com a identificação de riscos e contrafações. Para importadores e despachantes, o cenário impõe maior rigor em due diligence, conformidade técnica e verificação da cadeia de fornecimento.
Ao final, o ato declaratório não cria novas hipóteses legais de perdimento, mas consolida uma interpretação administrativa mais coerente, reforçando o papel da autoridade aduaneira na repressão de infrações que transcendem o interesse privado e afetam a coletividade, sem extrapolar o espaço próprio do direito de propriedade intelectual. O resultado é um equilíbrio mais claro entre a proteção marcária, a segurança jurídica e a tutela de interesses públicos relevantes.
Francesca Balestrin
Advogada nas áreas de Propriedade Intelectual e Direito Digital do escritório Silveiro Advogados, é graduada em Ciências Jurídicas e Sociais com Láurea Acadêmica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pós-graduada em Direito Digital, Cybersecurity e Inteligência Artificial pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).
Vitória Dalagnol
Advogada das áreas de Direito Civil e Processo Civil do Silveiro Advogados, é graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com certificação em estudos políticos pela Sciences Po Rennes (França) e pós-graduanda em Direito Aduaneiro pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).



