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Sociedade estrangeira pode participar de sociedade limitada sem autorização do Poder Executivo?

Foi proferida pelo juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo decisão negando um pedido de falência formulado por uma sociedade empresária limitada, da qual participa uma sociedade estrangeira, sob o argumento de que a sociedade requerente é irregular, tendo em vista que a participação do sócio estrangeiro não foi autorizada pelo Poder Executivo.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Atualizado em 28 de outubro de 2008 15:51


Sociedade estrangeira pode participar de sociedade limitada sem autorização do Poder Executivo?

Lucas Martins Magalhães da Rocha*

Ana Paula Terra*

Foi proferida pelo juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo decisão negando um pedido de falência formulado por uma sociedade empresária limitada, da qual participa uma sociedade estrangeira, sob o argumento de que a sociedade requerente é irregular, tendo em vista que a participação do sócio estrangeiro não foi autorizada pelo Poder Executivo.

O entendimento acerca da irregularidade da sociedade embasa-se no disposto no artigo 1.134, caput, do Código Civil (Lei 10.406/02)¹, que possui a seguinte redação:

Art. 1.134. A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira.

Com efeito, a redação do dispositivo comporta dúvidas na sua interpretação, tendo em vista que mistura dois conceitos distintos, quais sejam

(i) atuação, operação, exercício de atividades no Brasil diretamente pela sociedade estrangeira; e,

(ii) propriedade de participação acionária no Brasil por sociedade estrangeira.

A interpretação literal da parte final do artigo em análise poderia levar ao equivocado entendimento de que a sociedade estrangeira sempre dependeria de autorização do Poder Executivo para participar de sociedades no Brasil, salvo se o tipo societário da sociedade brasileira fosse a sociedade anônima.

Tal entendimento implicaria a irregularidade de todas as sociedades limitadas das quais participam sócios estrangeiros cujos atos constitutivos foram arquivados sem a referida autorização, com as severas conseqüências daí advindas.

Entretanto, essa visão não se sustenta quando consideradas as demais normas vigentes no ordenamento jurídico nacional. Toda interpretação jurídica deve considerar o sistema no qual a norma está inserida e não apenas a regra isolada, uma vez que nenhuma norma existe e possui significado por si só. Nesse sentido, a lição de Juarez Freitas² no sentido de que "a interpretação jurídica é sistemática ou não é interpretação."

A interpretação da parte final do artigo 1.134, caput, deve considerar também o disposto no artigos 1º, inciso IV; 5º, caput; 170, caput e parágrafo único da Constituição da República de 1988, no sentido de que ao sócio sociedade estrangeira deve ser garantido o mesmo tratamento conferido ao sócio brasileiro, sendo certo que a livre iniciativa e o livre exercício de qualquer atividade econômica lhe são assegurados, salvo nos casos expressamente excepcionados pela CR/88 ou pelas leis infraconstitucionais. Interpretar a parte final do artigo 1.134, caput, de maneira a condicionar a participação da sociedade estrangeira em toda e qualquer sociedade brasileira, com exceção da S/A, à autorização do Poder Executivo afrontaria diretamente os dispositivos constitucionais mencionados. Nesse caso, a livre iniciativa e o livre exercício de atividade econômica pelo sócio sociedade estrangeira sofreriam uma limitação que simplesmente não se sustenta ou justifica, ainda mais quando considerado que tal limitação decorreria do tipo societário da sociedade na qual participa o sócio sociedade estrangeira, e não da atividade desenvolvida. E nem se cogite que a necessidade de autorização do Poder Executivo não seria uma forma de restrição, tendo em vista que, além da extrema burocracia envolvida, é facultado ao Poder Executivo estabelecer condições convenientes à defesa dos interesses nacionais.

Por certo, as restrições impostas à participação de sociedades estrangeiras no capital de sociedades nacionais são plenamente justificáveis quando necessárias para a garantia da soberania, defesa ou interesse nacional.

Todavia, esse não é o caso do artigo 1.134, caput, que deve ser interpretado no sentido de que, para o exercício direto de atividades no Brasil pela sociedade estrangeira, a autorização será necessária, tendo em vista que os atos constitutivos da sociedade foram praticados no exterior e a sociedade estrangeira atuará diretamente no Brasil. Já para a participação em sociedades nacionais, a parte final do artigo deve ser interpretada sistemática e extensivamente, no sentido de que a sociedade estrangeira não depende de qualquer autorização para participar de qualquer sociedade brasileira, independente do tipo societário assumido, salvo nos casos expressamente determinados pela CR/88 ou leis, nos quais a atividade desenvolvida pela sociedade brasileira seja o diferenciador entre a imposição ou não da restrição, e não o tipo societário desta.

Assim, considerando as demais normas existentes no ordenamento jurídico nacional, notadamente as normas constitucionais, entende-se que, com respeito ao magistrado, a decisão foi equivocada, uma vez que a parte final do artigo 1.134, caput, do Código Civil deve ser interpretada sistemática e extensivamente, conforme os subsídios acima apresentados, a fim de se preservar o princípio da segurança jurídica, os investimentos realizados no Brasil pelas sócias sociedades estrangeiras e a eficácia das normas constitucionais. Por tais motivos, entende-se que a sociedade estrangeira pode participar de sociedade limitada sem a necessidade de autorização do Poder Executivo.

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(1) Tal dispositivo reproduz a redação do artigo 64 do Decreto-lei 2.627/40 (antiga Lei das Sociedades por Ações), cujo Capítulo VIII foi revogado tacitamente pelo Código Civil, por força do artigo 2º, § 1º, do Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil). O artigo 300, da Lei 6.404/76, revogou expressamente o Decreto-lei 2.627/40, com exceção do seu Capítulo VIII.

(2) FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 70.

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*Advogados do Departamento de Consultoria da Azevedo Sette Advogados


 

 

 

 

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