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A solidão da gata

Vejo a Miúcha ali perscrutando a rua por trás das basculantes da janela, o olhar panorâmico, atento e ligeiro, como se quisesse dar conta de todas as crianças em seus alaridos e como se a tarde fosse de domingo, um domingo inteiro, interminável domingo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Atualizado em 2 de junho de 2009 13:11


A solidão da gata

Edson Vidigal*

Vejo a Miúcha ali perscrutando a rua por trás das basculantes da janela, o olhar panorâmico, atento e ligeiro, como se quisesse dar conta de todas as crianças em seus alaridos e como se a tarde fosse de domingo, um domingo inteiro, interminável domingo.

Vejo a Miúcha ali na sua solidão como se a janela fosse a sua penitência e as basculantes o seu único direito para vislumbrar o mundo lá fora. Vejo a Miúcha ali silenciosa, mirando o tempo, e me dano a imaginar as crianças derramadas no abandono dessa exclusão que não tem fim, que não tem fim.

Dizer que melhor é estar na pobreza a ter que viver na miséria, oh isso é de uma cretinice sem par. Mas quem disse que o quadro em muitos quadrantes não é mesmo de miséria? Então, nem miséria, nem pobreza.

Por que não trabalharmos juntos, vencendo a miséria onde houver e a pobreza onde ela estiver, por que não? Negar a miséria e realçar a pobreza é entoar loas aos demônios do conformismo.

Claro que a Miúcha não sabe nada sobre isso. Ela adora crianças e as crianças gostam muito dela. Mas nem ela, nem as crianças, entendem sobre as esperanças que chegaram a ser tão grandes a ponto de nem mais caberem numa só bandeira das lutas.

E quem iria imaginar que aquelas esperanças de tão enormes, quase disformes, fossem murchando, murchando, até ficarem do tamanho e algo parecidas com as muriçocas.

A gente fica dizendo que as crianças são o futuro do Brasil. Mas que futuro será esse com mais de cinco milhões de crianças abandonadas perambulando pelas ruas e dormindo nas calçadas do Brasil?

Sem a família para lhes dar orientação e bons exemplos, subnutridas no corpo e sem nutrição alguma na alma, aprendem com as carências próprias de cada momento que a vida no mundo delas é um constante se defender e um invariável atacar.

Os ingleses da pequena cidade de Loughborough não estão achando nada engraçado um gato chamado Henry entrar nas suas casas em busca de meias. Henry pode ser visto constantemente sentado sobre um muro próximo à casa dos seus donos com um par de meias na boca. Chegam a quase cem os pares de meias furtados.

Miúcha parece calma, só parece, em seu solitário posto de observação, atrás das basculantes da janela vendo a gralhada das crianças lá fora.

Corre na rede, quero dizer pela internet, umas definições de solidão atribuídas a Chico Buarque. Diz que solidão não é a falta de gente para conversar, namorar, passear ou fazer sexo. Isto é carência. Também não é o vazio de gente ao nosso lado. Isto é circunstância.

Na conclusão, solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma. Digo eu, essa é a solidão dos que chegando ao poder não sabem o que fazer com o poder. É a famosa solidão do poder.

Solitário sobre o muro próximo da casa dos seus donos está o Henry, o gato inglês que se compraz cheirando as meias que furta das vizinhas.

Solitária, com certeza, não está aqui a Miúcha, a cadela pug daqui de casa, em seus três meses de idade, a acompanhar da janela com seu olhar panorâmico e tralhoto o corre-corre da criançada lá fora, em frente.

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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA





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