dr. Pintassilgo

Jaboticabal

Todo início é escuridão.

Antes de Deus fazer a luz, talvez com um simples estalar de dedos, havia o breu.

Antes do início doutrinado pelos cientistas, uma estupenda explosão, havia o caos.

Também no útero, há calor, porém, não há luz.

Se o tempo flui majestoso, faz-se necessário que sigamos rumo adiante, sempre em busca da luz.

Com a cabeça imersa em cismas, eis que alcei vôo para plagas distantes de meu lar, na procura do bem-estar, das gentilezas escondidas de maneira acanhada, do respeito à pessoa na forma de seus direitos e na simples solidariedade.

Toma-me a nostalgia de tempos que agora parecem longínquos, em que os vizinhos sentavam-se à beira da calçada, onde meninos pelejavam em jogos sem quaisquer petrechos, onde a palavra “comunidade” possuía razão de existir ; hoje substituída pela moderna e afetada “sociedade” (mais imponente e altiva).

Não se faz a Roda do Tempo revoltear-se para trás, disso bem sabemos, mas pode-se esperar que quando ela volver-se para frente, nos traga um mundo melhor.

E mais humano.

Eis que na minha primeira parada chego a Jaboticabal. Diviso, na entrada, um monumento de brancas colunas gregas. Uma evocação ao “Parthenon”, o templo grego dedicado à deusa Atena. Logo depois descubro que a cidade é conhecida como “Athenas Paulista”, graças à cultura que floresceu por aqui, tanto quanto as jabuticabeiras que lhe batizaram.

Chego à praça e me envolvo em suave colóquio com as pessoas, as quais chamo de “adoradores da terra” ; são aqueles que amam o chão, que cultuam o céu e respiram como ninguém os ares das paragens onde vivem. Quando um deles me cantarola o hino da cidade, noto mais uma menção da cultura helênica, nos versos :

“...Melopéia sem igual

A cidade sinfônica

A nossa Jaboticabal

Mansão sonorosa,

Alegre e litúrgica”

"Melopéia" ! "Melopéia" ! O modo grego de se fazer música !

Contam-me os adoradores da terra, que por aqui desfilaram bandas de música, de deleitáveis melodias.

Grandes prédios abrigavam portentosos colégios, ambos com nomes de santo : Santo André e São Luís. Agora, mais do que nunca, o “Parthenon” tem seu sentido : é o amor à sabedoria.

Um adorador da terra, sentado de forma tranqüila, me conta que aqui nasceu Alfredo Buzaid. Aqui fez seus estudos, no exigente ginásio São Luís, então dirigido pelo educador Professor Aurélio Arrobas Martins. Advogado brilhante, trilhou bela vereda jurídica até o Supremo Tribunal Federal, sendo também ministro de Estado. Sim, é vero, lembro-me então que conheço as meritórias obras do ilustríssimo doutor. E como sobrevôo “Athenas”, onde o pensamento foi elevado a uma superior condição, separando-se do mítico, do medo e das amarras do sentimento, penso na figura do doutor Buzaid. Assim como todos os homens são capazes de grandes façanhas, também trazem consigo a capacidade de realizar atos inglórios, obscuros; sem a tão almejada luz.

Sua história na era dos generais, que impuseram ao país os infames Atos Institucionais, é antítese crua da máxima que o poder é emanado do povo. Sua pena, ilustre na concepção de grandes obras doutrinárias, despachava mandados de silêncio nas redações dos matutinos. A pena que calava outras penas. É a razão apartada do sentimento.

Contam as páginas da vida pátria que em idos de 1973, Júlio Mesquita Neto, então diretor d'O Estado de S. Paulo, travou diálogo áspero, porém não menos desassombrado, com um interrogante, por culpa de uma notícia que não deveria (segundo a lógica dos homens de dragona) ir à baila :

- O sr. é o diretor-responsável pelo jornal O Estado de S.Paulo ?

- Não!

- O sr. é o diretor-responsável pelo jornal O Estado de S. Paulo ?

- Não!

- Então quem é ?

- O ministro da Justiça, professor Alfredo Buzaid, que todas as noites tem um censor na tipografia do jornal.

Eram os anos de chumbo e de coragem.

Reminiscências postas de lado (ora, tenho uma missão e não quero ser engaiolado pelo amado Diretor), e esquecendo por um instante a ambigüidade dos homens, volto-me à minha pertinaz procura.

Na andança para o Fórum, vi-me cercado pelas rosas de Jaboticabal ; rosas estas que não são as romanceiras flores ! São rosas as moças que trançam pelas estreitas ruas, com ares desanuviados, singelos, justificando com Jstiça o epíteto de "Cidade das Rosas".

Refeito de meu encanto devaneador, eis que chego ao prédio que abriga o Fórum.

Pelos corredores, nem espaços, nem estreitos, as pessoas transitavam seriamente.

Nos diálogos francos que tive (não costumo conversar sem a companhia da franqueza), as decepções, queixumes se debatiam de frente com a intensa expectativa de mudança. As vozes dos magistrados e do povo em uníssono : seriam bem-vindos, recebidos de boníssimo grado, mais magistrados, para que tantos anseios se dissipem perante a atinada balança ! Mister uma nova vara aqui em solo jaboticabalense ! A comunidade aventa ansiosa. Das esperanças dos causídicos, subtraio a de que vivemos na era dos dígitos : nossos dedos de carne e os binários, numa combinação que acelera nossa vida. Máquinas menores são urgentes para que a máquina-mor não trave, e daí possa empedernir-se.

Creio que toda justa pode ser finda. Por isso, toda ânsia pelo resguardo da Justiça não poderá ser em vão, dispersada feito poeira ou mesmo relegada a patamares inferiores da nossa consciência enquanto Nação. Vem a mim, trazidas pelo vento mensageiro, palavras oriundas, da dança harmoniosa, de par, da razão e sentimento, proferidas ontem pelo digníssimo doutor Celso Limongi, em sua concorrida posse como presidente do TJ/SP :

“É obrigação do juiz pôr a mão no prato da balança”.

Sem que tenha de aparar nenhuma aresta, tal frase poderia ser lema de minha busca. Mas tal ato, querido Dr. Limongi, deve ser imitado por todos aqueles que, no início de longos anos de estudo e mesmo de ofício, buscaram no Direito a saudável gana por mudanças. Essa dicotomia entre razão e sentimento já se mostrou temerosa para nossa vida.

Para me despedir desta doce terra onde viveu a poeta Cora Coralina, eis que recito, para mim mesmo (impulsionando-me a continuar a jornada), os versos suaves de brisa dessa mestra das palavras :

Assim eu vejo a vida

A vida tem duas faces:

Positiva e negativa

O passado foi duro

mas deixou o seu legado

Saber viver é a grande sabedoria

Que eu possa dignificar

Minha condição de mulher,

Aceitar suas limitações

E me fazer pedra de segurança

dos valores que vão desmoronando.

Nasci em tempos rudes

Aceitei contradições

lutas e pedras

como lições de vida

e delas me sirvo

Aprendi a viver.

Cora Coralina

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