Artigo - A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida

1/4/2010
Flavia Rossetti – escritório Kayatt, Silvestri, Rossetti e Barbara - Sociedade de Advogados

"Prezados senhores, primeiramente, gostaria de parabenizá-los pela magnitude do site migalhas na divulgação de informações e debates acerca de relevantes temas. Manifesto-me a respeito do texto "Direito de morrer" publicado no Migalhas 2.357, cumprimentando os seus autores em especial pela profundidade e acuidade com que abordaram o tema  (31/3/10 - clique aqui). É fato que, com o passar dos anos, determinados temas antes absolutamente intangíveis à compreensão e ao comando do ser humano, passaram a ser melhor dominados por ele com o auxílio da ciência que tudo intenta saber e controlar. Graças à ciência diversas doenças, antes fatais, foram exterminadas, outras foram controladas e seus efeitos mitigados. Entretanto, é preciso curvar-se à nossa absoluta incapacidade de controlar o início e o término da vida. Assim como não temos o comando a respeito do início de nossa vida, é certo dizer que não temos condições psíquicas ou mesmo científicas de decidir, prever e determinar quando e como se dará nossa morte. O fato é que a ciência ainda não se tornou precisa o bastante para afirmar peremptoriamente que determinada pessoa encontra-se em estado irreversível e incurável. Estão aí presentes os incontáveis casos de (inacreditáveis) reversões de situações de coma (além de outras enfermidades tidas por incuráveis) que, pelos respeitáveis padrões médicos, eram absolutamente impossíveis. Não se pode, nesse diapasão, legitimar a ceifa da vida, ainda que destinada a abreviar determinado sofrimento tido por irreversível, até porque determinado quadro de doença grave pode seguir o curso contrário à previsão ou estatística médica, justamente porque se trata de tema cujo poder de decisão/comando não cabe ao ser humano. Facultar ao doente ou a seus familiares a opção de abreviar ou prolongar a vida pode ser mais cruel do que lidar com o sofrimento, na medida em que se responsabiliza o doente ou seu familiar por uma decisão que, por sua própria natureza, não cabe a qualquer ser humano, por mais consciente e esclarecido que seja. A liberdade de decidir a respeito do término da vida encontra óbice justamente no abalo psíquico causado pela dor física tanto do doente como de seus familiares. Até que ponto alguém que sente uma dor física profunda é capaz de exercer a sua liberdade, preservar a sua inviolabilidade e principalmente exprimir sua vontade com a necessária sensatez? A decisão exprimida pelo impulso desesperado da dor física não é nem livre, nem consciente e muito menos esclarecida. Pressupõe-se o pleno domínio do equilíbrio (inexistente para aquele que convive com a dor própria ou de algum ente querido) para que alguém possa dispor a respeito do direito à vida ou à morte. Algumas perguntas podem auxiliar na compreensão desse tema tão complexo: Como justificar a destruição voluntária de uma vida que poderia ter a chance, ainda que estatisticamente pequena, de sobrevivência? Como categorizar - com a necessária certeza e infalibilidade - uma situação física como irreversível e incurável? Como garantir o pleno exercício da liberdade por quem se encontra fragilizado pelo convívio com a dor? Há que se transitar com cautela pelo tema da flexibilização - qualquer que seja a sua mola propulsora - do direito à vida, para que não se cogite a criação retórica de exceções à essa regra inviolável que serve de sustentação a tantas outras existentes em nosso sistema jurídico. Nesse contexto, como criar uma categorização de circunstâncias que supostamente autorizariam a intervenção do homem em tema tão alheio ao seu domínio? E como aferir o grau de sofrimento supostamente capaz de autorizar a legítima antecipação da morte? Parece-me que a preservação da vida não admite interpretações, mitigações e adaptações, sob pena de deixar de ser um valor imaculado. O direito à vida não admite elasticidades capazes de esvaziar o seu conteúdo. E a liberdade, seguindo a linha de entendimento de Hannah Arendt, somente se consuma 'quando o quero e o posso coincidem' (Entre o Passado e o Futuro). E no que tange ao direito à vida, a nenhum indivíduo pode ser concedido o direito de decidir o tempo da morte própria ou de familiares. Se pudéssemos, ainda que em tese, confiar plenamente em determinada análise que apontasse pela irreversibilidade de determinado quadro de doença e, calcados nessa análise (cuja infalibilidade se revela na prática impossível), admitir a diminuição do sofrimento pela abreviação da vida, é certo dizer que estaríamos abrindo perigoso precedente de mitigação do direito à vida. Nenhuma pessoa doente tem condições psíquicas de definir qual é a hora certa para a sua morte. O exercício de sua autonomia nesse caso deve ser tolhido para garantir a sobrevivência do direito à vida, princípio e valor que devem permanecer intactos e livres de elasticidades. As situações de extrema dor física tiram do indivíduo o equilíbrio necessário à compreensão dos efeitos da sua decisão de abreviar a própria vida. Até porque a dor física em muitos casos provoca depressão, a dor da alma que, por si só, impulsiona a pessoa a decisões que não seriam tomadas se estivesse livre das amarras penosas do sofrimento físico e psíquico. É nesse contexto que a dignidade humana deve também ser invocada de um ser humano em favor de qualquer outro que possa estar impossibilitado de lutar pela preservação de sua vida (ou de familiares), ainda que sejam pequenas as chances de sobrevivência. A dignidade é um fim em si mesmo, mas que sobrevive às custas do dever de fiscalização da coletividade que tem a obrigação de proteger aqueles que estiverem sem condições de zelar pela preservação da vida. Sendo essas as minhas considerações.  Atenciosamente,"

Envie sua Migalha