Artigo - Aquisição de terras por estrangeiros

13/9/2010
José André Beretta Filho - escritório Advocacia Muzzi

"A polêmica está instaurada (Migalhas 2.468 - 10/9/10 - "Aquisição de terras por estrangeiros" - clique aqui). A AGU entende que a lei 5.709/71 foi recepcionada pela atual Constituição. De outro lado, há entendimentos de que não, que a distinção foi eliminada da legislação nacional, que haveria inconstitucionalidades nessa restrição etc. (exemplos disso são os comentários dos Drs. Sérgio Varella Bruna e Luciano de Souza Godoy). Vejo a questão por um ângulo mais complicado e minha intenção não é assumir uma ou outra posição, mas levantar tópicos para reflexões. Começo apontado que : (1) a propriedade das riquezas existentes no subsolo pertencem à União, pelo que a exploração das mesmas depende de autorização e/ou concessão da União (CF. arts. 20 e 176); (2) a propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão é privativa de brasileiros natos ou naturalizados (CF. art. 222); (3) a navegação de cabotagem por estrangeiros é restrita (CF. art. 178, § único); (4) a participação societária de estrangeiros em empresas aéreas no Brasil é limitada na forma da Lei (CF. art. 178); (5) a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônios nacionais (CF. art.225, § 4º); (6) a biodiversidade (o patrimônio genético) do País é um patrimônio nacional e que deve ser protegido (CF. art. 225, § 1º, II); e (7) o Poder Público deve definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos (CF. art. 225, § 1º, III). Todos os itens acima apontam para o efetivo exercício da soberania nacional sobre o seu território, sobre suas riquezas, inclusive de forma prospectiva, isto porque as normas constitucionais também 'falam' para o futuro (por exemplo : ao usar as expressões 'potenciais', 'preservar', etc.). No cerne de tudo está a preservação da riqueza para o povo, pois prevalece o primado da independência dos Estados e os seus direitos à autodeterminação e desenvolvimento (o que não quer dizer que isso se faça mediante um processo de isolacionismo). Não discuto, aqui, se o nacionalismo é algo desejável ou não, até porque o nacionalismo existe sob várias formas, o estatizante, o mais liberal e etc. O fato é que o desenvolvimento de um país depende, essencialmente, de suas decisões sobre si, até mesmo para saber quando deve abdicar de sua soberania e até onde isso pode ser feito. É em virtude disso que, em que pese não haver mais a distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital estrangeiro, como colocava o já revogado art. 171 da CF, é possível a restrição de direitos, em território nacional, ao estrangeiro, pelos mais variados motivos e em diversos segmentos econômicos, e sem que exista grande discussão sobre a constitucionalidade de tais regras. Este quadro, como se vê, evolui com o tempo. Exemplifico : antes da existência do avião, não havia qualquer sentido em se regulamentar a propriedade sobre empresas aéreas. Hoje, então, outras atividades, surgidas no processo de desenvolvimento, passam a ter que ser avaliadas como se passíveis, ou não, desse tratamento. Dou exemplos : A) pela convergência digital das mídias, existe atividade jornalística e/ou de radiodifusão pela Internet que seja realizada por empresas sob controle de capitais estrangeiros ? Isso fere a regra do art. 222 da CF/88 ? Hoje, o que é jornalismo, radiodifusão ?; B) a fauna que está em determinada área privada pode ser confinada para a pesquisa e/ou exploração de sua biodiversidade ? Esse confinamento seria possível seja por empresas de capital nacional ou empresas nacionais com capitais sob controle estrangeiro ? e C) a flora que está situada numa fazenda, é propriedade do titular da terra ? Pode ele explorar a biodiversidade que existe nessas plantas ? Pode ele plantar o que quiser para pesquisas de biodiversidade ? As respostas certamente não são simples e não são jurídicas, são políticas. O problema é que as respostas brasileiras às grandes questões políticas são, em geral, tacanhas, isto porque não existe visão de longo prazo (exemplo : o Brasil sediou um Pan-Americano, mas as obras, caríssimas, não servem para as Olimpíadas, ainda que apenas nove anos medeiem um evento do outro e que as Olimpíadas já fossem algo pretendido pelo país em 2007). A logística do transporte de carga brasileira é concentrada em caminhões, mas ao invés de se investir em ferrovias para agilizar essa questão, quer-se antes ter um trem-bala, mesmo que não haja passageiros para ele. Essa ausência de visão de longo prazo impede que o nosso ordenamento jurídico possa se sustentar por prazos mais razoáveis (o novo CC já é visto, por muitos, como ultrapassado em vários aspectos). Como pode haver 'planejamento normativo' se não há um planejamento do que se queira do país (exceto para o próximo período eletivo). O 'custo' disso é o descontrole e torna a intervenção jurídica quase sempre desastrosa, em particular pela forma com que ela é feita. Assim, embora haja lógica nacional em se preservar a integridade das riquezas territoriais, que incluem suas terras, embora a função social da propriedade seja constitucionalmente válida e embora haja inúmeros exemplos que tornam clara a possibilidade de diferenciar estrangeiros e brasileiros, conceitos esses tomados em suas acepções mais ampla; a forma adotada para se buscar limitar o acesso futuro à propriedade territorial por empresas sob controle de capitais estrangeiros parece não seguir por caminhos recomendáveis, que é o de se basear em um parecer da AGU, revisitando e revendo um posicionamento anterior. O próprio parecer fornece indícios de que a forma adotada não é mais adequada, ao dizer : '2. A crise de alimentos no mundo e a possibilidade de adoção, em larga escala, do biocombustível como importante fonte alternativa de energia, apta a diversificar, com grande vantagem, a matriz energética nacional, são os principais vetores dessa nova abordagem da questão da propriedade da terra no Brasil, especialmente dos imóveis rurais. (...) 7. Tal situação revestia-se, então, em junho de 2007, e reveste-se, ainda, de caráter estratégico, pois, a ausência de controle dessas aquisições gera, entre outros, os seguintes efeitos : a) expansão da fronteira agrícola com o avanço do cultivo em áreas de proteção ambiental e em unidades de conservação; b) valorização desarrazoada do preço da terra e incidência da especulação imobiliária gerando aumento do custo do processo desapropriação voltada para a reforma agrária, bem como a redução do estoque de TERRAS disponíveis para esse fim; c) crescimento da venda ilegal de TERRAS públicas; d) utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição na aquisição dessas terras; e) aumento da grilagem de terras; f) proliferação de 'laranjas' na aquisição dessas terras; g) incremento dos números referentes à biopirataria na Região Amazônica; h) ampliação, sem a devida regulação, da produção de etanol e biodiesel; i) aquisição de TERRAS em faixa de fronteira pondo em risco a segurança nacional. 8. Passados quatorze anos, o novo contexto econômico mundial, rapidamente descrito anteriormente, impunha um reposicionamento do Governo Federal sobre o tema, valendo-se dos instrumentos disponíveis, dentre os quais a eventual revisão do Parecer AGU/GQ-181 e do Parecer AGU/GQ-22'. O tema é maior do que pode caber num parecer da AGU. O tema não é do Governo Federal. O tema é do Congresso Nacional, a quem cabe (caberia), perceber o andar dos tempos, conciliando interesses nacionais que permitam uma autodeterminação e uma autopreservação do Brasil frente à propalada 'internacionalização' do mundo, tirando dela o que há de bom e dando a ela o que podemos dar de bom. Como feito, a resposta é míope, não é uma resposta de Estadistas, mas de estudiosos do Direito e que tem como resultados não uma solução, mas uma enxurrada de críticas e aberturas para disputas e mais disputas, que talvez levem ao STF ter que discutir se pode ou não haver uma 'demarcação da terra brasileira'."

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