Saúde no Brasil

20/9/2010
Sylvie Boechat

"O Brasil está doente, cronicamente doente. E temo que, como em tantas outras hipóteses, não haverá remédio 'disponível no SUS' para tratar do seu mal. Também não haverá liminar em ação judicial que venha dar jeito para obrigar as instituições a cumprirem o seu papel de tentar melhorar a 'sua saúde'. Por fim, talvez nem sobrará espaço para que a imprensa se digne a alertar a presença desse mal e dar calor à notícia a justificar sua publicação, porque 'vende pouco'. Lamentavelmente, o Brasil está tomado pela alienação, pela apatia e, o mais triste, pelo completo descaso com a vida humana. Gostaria de estar enganada em relação a isso, com o fio de esperança que me resta em relação à expectativa de ouvir os resultados das urnas no próximo dia 3 de outubro, mas, a cada dia que passa, me sinto cada vez mais descrente pelo cenário que tem sido desenhado a favor de personagens circenses, celebridades e corruptos popularmente conhecidos. Feita essa digressão, sou levada a lembrar das palavras finais do poema de Bertold Brecht: '...mas há homens que lutam por toda a vida, e esses são os imprescindíveis', quando paro para pensar na história do 'personagem da semana', retratado na capa da Revista Época (edição nº 643, de 10/9/10), que tem trazido, pelo menos para alguns, o grito de inconformismo diante de absurdos que dão a dimensão da cronicidade da nossa doença social e institucional. Explico. Em poucas palavras, como 'crônica de uma morte anunciada', Fábio de Souza do Nascimento, uma criança de 14 anos que lutou por toda a sua vida contra um câncer linfático, vencendo etapas notoriamente importantes, como passar anos dentro de hospitais, encontrar um doador compatível e realizar um transplante de medula óssea, morreu, após todo esse esforço de sobrevivência iniciado nos seus tenros anos, em virtude de o Estado brasileiro não lhe fornecer a tempo, um balão de oxigênio para o tratamento de problemas respiratórios devido a complicações comuns do pós-transplante, cujo custo mensal não passaria de R$ 520,00, porque discutia-se qual ente federativo (União, Estado ou Município) seria o competente para fornecê-lo (quando sabidamente a responsabilidade entre eles é solidária), deixando, assim, que o ar ficasse cada vez mais rarefeito para o menino, até lhe levar ao fim, 'morrendo na praia', no caso, no Rio de Janeiro. Esse guerreiro 'imprescindível', dentro do contexto dado por Brecht, teve seu futuro de glórias interrompido porque não teve acesso à integralidade da assistência prometida constitucionalmente pelo SUS. Mesmo assim, incessantemente, recorreu às instâncias jurisdicionais para pedir apoio, e ainda que tivesse obtido uma 'liminar' – que atualmente tem sido a única esperança de exercício do direito à saúde - não teve o esforço suficiente dos envolvidos no processo e das instituições que deveriam lhe dar guarida para que ela tivesse seu efetivo cumprimento. Pelo jeito, também não teve quem se empenhasse para dar visibilidade ao seu problema, enquanto ainda lhe restavam meses de vida, uma vez que a notícia de sua história só veio a público após um mês da sua morte e não nos absurdos 6 meses em que ele esperava pelo cumprimento da vulgarizada 'liminar' ! Possivelmente, se ao menos isso tivesse sido feito antes, talvez o desfecho desse drama pudesse ser outro : seja pela doação do equipamento por uma alma caridosa ou pela ação de organizações de pacientes atuantes em seu favor. Ora, quantos culpados nesse processo de agonia, meu Deus ! Com um histórico de superação que, por ironia (pasmem !), ainda lhe rendeu ser o personagem ilustrado na capa da Cartilha de Direitos dos Pacientes do INCA, Fabinho foi abandonado à própria sorte, morrendo vítima do detalhe, da falta de providência menor, considerando todo o tratamento anterior e caro pelo qual havia passado. Por isso, lamento pela nossa doença social e institucional. E pela sua cronicidade. Ou seja, já que o mal está instaurado, convivemos com ele sem nos movimentar para tentar curá-lo, com o mesmo esforço de quem luta por uma doença de sintomas agudos. Fabinho morreu como exemplo de um 'homem imprescindível', que lutou por toda a sua vida, a despeito de ter sido ela interrompida tão precocemente. Resta saber se nós, dentro do papel social que nos cabe, seremos, igualmente, agentes transformadores da nossa própria doença, ou morreremos vítima da passividade e da perda da capacidade de espanto. Assim, fica o convite para que, juntos, como células combativas e integrantes de um corpo de um guerreiro, digamos não contra esse estado de coisas, especialmente em relação às deficiências do SUS (do qual somos financiadores, lembrem-se !), cobrando dos responsáveis a reparação de fatos escabrosos como esse, dos quais qualquer um de nós poderia, ou, por que não (?), ainda poderá, ser vítima."

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