Casamento homoafetivo 14/12/2005 Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668 "Caro migalheiro José Renato M. de Almeida: inicialmente, o termo 'homoafetivo' não indica um mero sentimento fraterno como o Sr. disse. Ele foi criado pela Ilustre Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Dra. Maria Berenice Dias, para ressaltar o aspecto amoroso da união entre pessoas do mesmo sexo, no sentido de ser idêntico ao existente nas relações entre pessoas de sexos diversos, uma vez que existe uma forte carga de preconceito quanto ao termo 'homossexual', e pelo fato de o termo 'homoerótico' ressaltar apenas o caráter sexual da relação (que não é, nem de longe, o único aspecto nela existente). Assim, dito termo foi criado para destacar o amor existente na relação, donde a sua interpretação é incorreta, tendo em vista que vai contra o intuito da criadora do mesmo. Ademais, ao contrário do que você afirmou a meu respeito, eu não disse que o Direito de Família protege apenas as uniões amorosas. Eu disse que o 'casamento civil' e a 'união estável' têm este objeto de proteção, e não o Direito de Família como um todo. Este, além das uniões amorosas, abarca uma série de outras questões, como o direito a alimentos dos parentes entre si, a sucessão legítima e a testamentária, a porcentagem de bens podem ser doados pelos cônjuges/companheiros, entre outros. Contudo, o 'casamento civil' e a 'união estável' efetivamente protegem as uniões amorosas que formem uma entidade familiar, a saber aquelas que visem uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Como eu já disse nas minhas duas últimas migalhas, por muito tempo se pensou (como ainda hoje alguns pensam) que este nobre sentimento só pudesse ser atingido em uniões heteroafetivas, ante o preconceito existente contra a homoafetividade. Todavia, hoje este entendimento encontra-se superado, por ser tecnicamente incorreto dizer-se que a homossexualidade configuraria uma 'doença' ou um 'desvio', tendo em vista que a ciência médica mundial já se posicionou em sentido contrário, donde é ela tão normal e tão certa quanto a heterossexualidade. Dessa forma, as uniões homoafetivas formam uma família juridicamente protegida pelas leis do casamento civil e da união estável, apesar da omissão legal, donde são ditos regimes jurídicos aplicáveis a elas. Nesse sentido, o entendimento historicamente consagrado de que o 'casamento civil' só se realizaria entre um homem e uma mulher encontra-se equivocado, pois a partir do momento em que ele protege o amor que forma a entidade familiar, e considerando que a união homoafetiva é formada por esse amor, então só se pode concluir pela possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo. Recordo a você o que eu disse à migalheira Telma de Carvalho Fleury na semana de 4/12 a 10/12 (clique aqui): não é porque algo 'sempre foi assim' que ele está necessariamente certo, pois se assim fosse cairíamos no ciclo vicioso de que 'está certo porque sempre foi assim' e 'sempre foi assim porque está certo'... Como eu disse naquela oportunidade, se o Sr. concordar com esse raciocínio então imagino que o migalheiro entenda que o preconceito jurídico contra negros, findo no final do século XIX, deveria ter continuado existindo, haja vista que, até aquela data, dita discriminação arbitrária 'sempre tinha existido'. O Sr. só falta afirmar que é 'natural' que o casamento civil só se dê entre pessoas de sexos diversos... Pois bem: no Brasil, até o final do século XIX, o pensamento dominante era o de que era 'natural' o preconceito jurídico contra negros; até 1988, tinha-se como 'natural' o preconceito jurídico contra as mulheres, donde tinha-se como 'natural' a família patriarcal (dominada pelo 'pater', ou seja, pelo pai/homem), considerando-se como 'anti-natural', por exemplo, a família matriarcal, liderada pela mãe/mulher. Note que a idéia do que é 'natural' é algo que depende do conhecimento humano: quando este demonstra que algo que era tido como 'anti-natural' não o é (sendo tão normal como o outro comportamento tomado como paradigma), então passa-se a aceitá-lo como 'natural'. Nesta linha, considerando que a homoafetividade é tão normal quanto a heteroafetividade, justamente por não haver provas em sentido contrário (e por séculos se procurou, sem sucesso, por elas), o que a ciência médica mundial passou a afirmar a partir do final do século XX, então ela enquadra-se perfeitamente no conceito de entidade familiar juridicamente protegida, donde é juridicamente possível o casamento civil homoafetivo, assim como a união estável homoafetiva. Quando você fala que 'Os termos 'parceria civil' e 'Pacto Civil de Solidariedade (PACS)' usados no projeto brasileiro e na lei francesa, respectivamente, expressam mais adequadamente uma união entre pessoas do mesmo sexo, e um novo entendimento do que essas expressões querem dizer virá se consolidar.' (sic), você está ignorando o fato inegável de que a união homoafetiva constitui uma família juridicamente protegida, razão pela qual, 'data maxima venia', você está equivocado. Voltando ao tópico 'naturalidade', o que hoje entendemos por união estável era algo, antes de 1988, entendido como 'concubinato puro' e, por isso mesmo, como algo 'anti-natural' e fora do Direito de Família. Naquela época também se defendia que o máximo que podia existir entre os companheiros era um 'contrato de parceria', uma vez que a 'teoria das sociedades de fato', hoje aplicada por muitos às uniões homoafetivas, foi criada para resguardar o concubinato puro – veja, nesse sentido, a súmula 380 do STF, que diz que 'Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.' Hoje já não se pensa mais assim, considerando-se o antigo 'concubinato puro' como entidade familiar. É apenas mais uma amostra de que a evolução do pensamento humano enseja mudanças mesmo em conceitos jurídicos milenares, donde a 'tradição' não pode ser usada como desculpa para o não-reconhecimento do 'status' jurídico-familiar das uniões homoafetivas. Por outro lado, reconhecer o que defendo não implica na afirmação que os direitos garantidos à mulher em razão de suas características biológicas deveriam ser estendidos a algum homem que faça parte de uma união homoafetiva masculina (e vice-versa). Não se garantirá uma 'licença maternidade' a nenhum dos membros desse casal, pela óbvia constatação de que não foi nenhum deles que pariu a criança, da mesma forma que não se garantirá a nenhum dos membros desse casal o benefício da aposentadoria por tempo de serviço deferida à mulher, visto que este último direito também foi criado em razão das condições biológicas desta. Contudo, é perfeitamente cabível, no caso de se tratar do filho biológico de um deles, que o outro também receba, por analogia, uma licença paternidade, pois ambos serão os pais da criança (um biológico, outro socioafetivo – por favor não confunda esse 'afetivo' com aquele do 'homoafetivo', pois o significado das palavras difere num caso e noutro – neste, é um afeto amoroso; naquele, é um afeto fraterno). Não há dúvida de que seria muito útil uma lei que explicitasse todos os direitos oriundos de um casal homoafetivo, com todas as peculiaridades referentes a um casal masculino e a um casal feminino. Mas esta nova lei não precisaria excluir ditos casais do conceito de 'casamento civil' e de 'união estável': bastaria que aditasse o Código Civil, no livro do 'Direito de Família', ressaltando essas peculiaridades dentro do corpo legal hoje existente, tendo em vista que, como eu já disse por diversas vezes, a união homoafetiva enquadra-se perfeitamente no conceito de família juridicamente protegida, que é aquela abarcada por aqueles regimes jurídicos." Envie sua Migalha