Memórias boas e ruins

24/1/2006
Luiz Leitão – articulista

"Talvez as memórias sejam tudo o que levamos - se é que o fazemos -, desta vida. Uma fração de segundo e o que é deixa de ser; uma vida se esvai, uma esperança morre. Da mesma forma, uma esperança nasce de repente, do nada. E fica tudo arquivado na nossa consciência, coisas boas, vicissitudes, alegrias, choros. Porque a vida e tudo o mais no universo é regido pelo tempo, mas talvez, apenas talvez, existam duas coisas difíceis de entender, aceitar, explicar e até admitir sua existência: o infinito e a eternidade, que, em última análise são a mesmíssima coisa. Pode-se imaginar um fim para o universo? O que haveria além? Um muro? E a eternidade, não tem começo, meio nem fim? Talvez ela seja nada mais, nada menos que o sempre, talvez já vivamos a eternidade. Tudo isto visto da nossa talvez pobre perspectiva humana, obnubilada, que desconhece as outras onze dimensões que os físicos cogitam existir. Mas se a flecha do tempo retrocedesse, consertaríamos nossos erros? O 'paradoxo dos gêmeos' diz que isto é impossível, tomaríamos as mesmíssimas decisões e cometeríamos os  mesmos erros. O castigo do tempo, uma expressão imprópria, nos faz sentir o aprendizado com dor, e com amor, também. Não é um castigo porque as experiências e as demais coisas acontecem para que possamos aprender com elas. Cronos, que significa tempo em grego era um deus do Olimpo, e ele é tão misterioso quanto invencível. Por curiosidade e para causar mais perplexidade, o quantum, o menor pacote de energia que existe, viaja à velocidade da luz, insuperável, e sabe-se que para um quantum, o tempo pára. E mais intrigante ainda, tudo é energia, a do elétron é negativa, o próton, do núcleo do átomo é positivo e o nêutron é neutro, tem carga zero. A história retrata o tempo passado, mas não fielmente, não registra cada sentimento, alegria, sofrimento. A história é genérica, é como uma fotografia, talvez. Uma foto nos mostra um momento, mas não o aroma que permeava o ambiente, o que as pessoas sentiam. Fala-se muito em vida eterna, mas deve ser um aborrecimento total, porque se a consciência não morre, uma hora vai aparecer algum tédio, o que é uma regressão à condição humana. Voltando às memórias, podemos dar 'prioridade', a guardar as boas e, não exatamente jogar fora as más, porém mantê-las no 'arquivo morto', aquele que ninguém consulta. Lembrar de coisas tão frugais e tão boas, saborosas, como um beijo, como o primeiro toque no filho recém-nascido; o pegar naquela mãozinha e  se assombrar com a sua fragilidade. O mal, relembrado, nos faz mais mal ainda, traz a raiva, o inconformismo, sentimentos que prejudicam. Acaso vale a pena ficar relembrando um assalto? Claro que não, é o preço por se viver numa grande cidade, e ademais, ninguém morre de véspera. Recordar os erros de pronúncia dos filhos pequenos não tem preço, a primeira queda da bicicleta, o primeiro dia de colégio, com choro, justo espernear por uma inédita separação. Num filme cujo nome foge à memória, o protagonista está condenado a viver todos os dias exatamente iguais, por séculos a fio. E numa conversa com uma moça, ela pergunta sua idade - que ele não aparenta - e ele responde: 'tantos séculos', o que naturalmente causa espanto a ela que ri, ao que ele retruca: sessenta anos ou sessenta segundos; que diferença faz? Como disse o economista Lorde Keynes, no século passado, lá pelos anos 30: 'a longo prazo, estaremos todo mortos'. Então, vem a pergunta: se tudo é assim tão fugaz, de que vale gastar tempo trazendo à memória más recordações? É claro que certas memórias se prestam ao aprendizado, ou seja, 'gato escaldado tem medo de água fria'. Mas é preciso se livrar da recordação do sofrimento evitável, e o que é isto? É exatamente evitar reviver constantemente os ressentimentos. Quando nos formos, levemos conosco as coisas boas, o perfume da flor, o sorriso da amada, e não as brigas; o abraço e não o tapa, o grito. E mais: muita coisa que as pessoas encaram como ruins, são boas: uma crítica, uma correção são ensinamentos, e por eles se deve agradecer, jamais demonstrar raiva. Vários sábios da antiguidade já disseram isto: 'toda questão tem dois lados, tudo tem um lado bom; por exemplo, uma doença pode mudar o modo de a pessoa ver a vida, e rever seus valores, tornando-se melhor'. É muito para a nossa limitada compreensão, certamente há algo mais."

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