Nepotismo

10/3/2006
Adauto Suannes

"A propósito do tema (Migalhas 1.369 – 9/3/06 – "Nepotismo", Luiz Ricardo Gomes Aranha – clique aqui), eis texto extraído do livro Crimes numa Casca de Noz:

'O chamado Papa Bórgia, nome maldoso pelo qual é conhecido pelos não-católicos, foi Alexandre VI, uma figura digna de um romance de William Shakespeare. Ou de um livro de Mário Puzzo, filmado pelo Francis Coppola. Eu até diria que a Máfia foi inspirada na família dos Bórgia e não nos nobres de Nápoles que não aceitavam a Casa de Bourbon', acrescentou. 'Eu, pelo menos, jamais soube qual seria a origem da Máfia. Essa da Casa de Bourbon para mim é novidade', ressalvou o outro. 'Pelo menos é o que dizem. Os napolitanos, descontentes com os franceses, gritavam na rua: 'Morte ala Francia Italia anela!', ou seja, 'Morte à França a Itália deseja! M.A.F.I.A.' Como diria minha mulher, si non è vero, è bene trovato.' O outro fez suas ressalvas. 'Difícil imaginar que de uma desavença entre dois países tenha surgido uma sociedade secreta sangrenta, que jamais teve qualquer preocupação política. Digo política no bom sentido, pois sei muito bem que muitos homens importantes da Itália deveram e devem seu posto à Cosa Nostra', completou Juán Tenório. 'Mas me interessou mesmo a sua referência à família Bórgia. Eu pouco sei a respeito disso'. 'É uma história que serve para nos deixar mais humildes. Rodrigo Bórgia foi o grande representante da família, pois, sendo sobrinho do Papa Calisto III, cismou de ser papa também', começou o professor Milor. 'Mas nós sabemos que não basta cismar de ser papa para sê-lo. É o Espírito Santo que inspira os membros do colégio episcopal, segundo cremos', observou Tenório. 'E o que ocorre no Conclave é mantido em segredo por todos os que dele participaram'. 'Com todo respeito, eu lembrarei que a palavra conclave vem de cum clave, pois, quando da eleição de certo papa, que viria a chamar-se Clemente IV, a escolha estava demorando tanto, com despesas enormes para os cofres do Vaticano, que o ecônomo trancou a porta por fora, não permitindo que se levasse o que comer e o que beber aos eleitores, apressando, assim, a baixa do Espírito Santo. Cum clave! Com chave'. Ambos deram boa risada com o modo como a história foi narrada. O garçom trouxe-lhes mais bebida, e a conversa prosseguiu, animada. 'Pois o nosso Rodrigo deve ter feito algum acordo com o Santo Espírito, graças ao qual foi papa durante 10 anos. Seu papado foi algo simplesmente inimaginável, um autêntico paradigma da corrupção, o que mais tarde iria ser o motivo da separação dos católicos que protestavam contra esses e outros abusos, criando-se as igrejas protestantes. Alexandre VI foi historicamente um papa corrupto e pouco dado às virtudes cristãs. Teve diversas amantes e pelo menos sete filhos, entre os quais César e Lucrécia Bórgia, a famosa Lucrécia, que é sinônimo de luxúria. Para conseguir uma aliança política com a França, Alexandre VI teria de se desligar de seus amigos napolitanos. E o papa se encontrava em situação difícil, já que tinha casado dois de seus filhos, Lucrécia e Geofredo, com bastardos do rei de Nápoles. Para provar sua fidelidade, Alexandre concordou em assassinar o marido de sua filha, o que, de fato, foi feito. Em relação a sua nora Sancha de Nápoles, a esposa de seu filho Geofredo, porém, ele preferiu mandar aprisioná-la. Ali, Sancha foi submetida a tal violência física e sexual que um ano depois, quando o papa morreu e ela pode ser libertada, já estava completamente louca, morrendo um ano depois. Tudo isso ad magnam gloriam Dei, meu caro Tenório'. Juán Tenório ouvia aquelas narrativas escabrosas com um ar de sincera repugnância. 'A sorte da Igreja é que o Espírito Santo jamais a abandona. Se dependesse dos padres e dos bispos ...', suspirou ele. 'Nós, espanhóis, aliás, temos alguma coisa a ver com esse papa, meu caro Tenório. Em maio de 1493, o Papa Alexandre VI, que era de origem espanhola, decretou pela bula Inter Cætera que as novas terras descobertas situadas a oeste de um meridiano a 100 léguas das ilhas do Cabo Verde pertenceriam à Espanha, e as terras a leste desse meridiano pertenceriam a Portugal. Ou seja, as terras para a Espanha e as águas para os portugueses', brincou o professor Milor. 'Não é a toa que a América do Sul quase toda fala espanhol. Ou um arremedo de espanhol, para ser exato'. 'Mas, se bem me lembro, o Tratado de Tordesilhas é de 1494', ressalvou Juán Tenório. 'Efetivamente. Aliás, foram várias reuniões entre os representantes dos dois países, já que Portugal se recusava a acatar a bula papal. Finalmente, na cidade de Tordesilhas, em Castela, foi assinado o tratado definitivo', aditou o professor. 'Que os portugueses jamais obedeceram, avançando para o oeste e quase chegando ao Oceano Pacífico', disse o outro. 'Não fosse a floresta amazônica ...' 'Mas preciso concluir a história do nosso patrício D. Rodrigo Bórgia. Não contente em ser papa e pai de uma respeitável ninhada, resolveu que um dos filhos seria seu sucessor. César Bórgia, com apenas 16 anos foi nomeado bispo, mesmo porque ninguém é obrigado a passar pelo seminário para ser bispo, como sabemos', observou o professor espanhol. 'Mas aos 16 anos! Isso é digno de um Guiness Book!', desabafou o outro. 'Pois saiba que aos 18 anos César Bórgia era cardeal! Claro que dentro de pouco tempo, não havendo mais promoção à vista, ele se entediou da vida monástica e renunciou aos poderes eclesiásticos, para ser feito duque pelo rei Luís XII, com a finalidade de agradar o papa, que era o pai do jovem precoce. Tantas fez esse César Bórgia que inspirou Nicoló Machiavelo a escrever sua obra mais conhecida, Il Principe. Eis, meu caro amigo, aonde chegou o descuido do Espírito Santo', concluiu Milor, pondo em suas palavras um tom irônico que não era muito habitual nele'."

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