Eleições 2006

16/8/2006
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"Ah! A Democracia. 'Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido'. Bonito, não? E daí? Será verdade? Será possível que essa instituição funcione? Agora, na época de novas eleições essa pergunta deve atormentar muita gente. É verdade que, segundo dizem, Churchill costumava afirmar que a democracia, que não é um bom sistema, aparentemente, tem o mérito de ser melhor que todos os demais sistemas pensados até agora. Mas, assistindo os programas políticos, os debates entre os candidatos, vendo quem são os candidatos, lembrando que os políticos que deveriam nos representar não nos representam mas o fazem apenas em seus próprios interesses, que não são poucos, fazendo a contabilidade de quantos são os políticos envolvidos em maracutaias e escândalos e assistindo a sucessão de delitos praticados pelos mesmos, a dúvida aumenta: será que esse sistema, essa instituição tem condições de responder aos anseios dos eleitores? H. Mencken, conhecido jornalista norte-americano, escritor de artigos cáusticos nos quais ridicularizava tudo e todos, tem uma opinião interessante sobre o assunto. O texto abaixo foi publicado, assim como outros ensaios, em seu 'LIVRO DOS INSULTOS'. Vale a pena conferir:

 

'DEMOCRACIA

 

ÚLTIMAS PALAVRAS

 

Um dos méritos da democracia é bastante óbvio: é talvez a mais charmosa forma de governo já criada pelo homem. O motivo não é difícil de descobrir. Ela se baseia em proposições palpavelmente falsas ? e o que não é verdade, como todo mundo sabe, é imensamente mais fascinante e satisfatório para a maioria dos homens do que o que é verdadeiro. A verdade tem uma aspereza que os alarma, e um ar de finalidade que entra em choque com o seu incurável romantismo. Quando se vêem nas grandes emergências da vida, voltam-se para aquelas velhas promessas, todas falsas mas deliciosamente reconfortantes ? e das quais a campeã é a que diz que os pobres herdarão a terra. Esta promessa está tanto na raiz do sistema religioso reinante no mundo moderno como no sistema político em voga. A democracia lhe dá uma certa aparência de verdade objetiva e demonstrável. O homem comum, funcionando como cidadão, tem a sensação de que é realmente importante para o mundo ? de que é ele que administra as coisas. Suas lamúrias contra os patifes e os demagogos dão-lhe uma enorme e misteriosa sensação de poder ? o que faz a felicidade de arcebispos, sargentos da polícia e outras sumidades. Da democracia, ele extrai também a convicção de que sabe das coisas, de que suas opiniões são levadas a sério pelos maiorais ? o que faz a felicidade dos senadores, das quiromantes e dos jovens intelectuais. Finalmente, dela sai também a consciência de um alto dever triunfantemente cumprido ? o que faz a felicidade dos carrascos e dos maridos.

 

Todas estas formas de felicidade são, naturalmente, ilusórias. Não chegam a durar. O democrata que pula no abismo para bater suas asas e entoar aleluias acaba com o nariz no chão. As sementes deste desastre estão em sua própria estupidez: ele não consegue se livrar daquela ingênua ilusão, tão cristã, de que a felicidade é algo que só se consegue tomando-a de outro. Mas há sementes também na própria natureza das coisas: uma promessa, afinal, não passa de uma promessa, mesmo quando baseada numa revelação divina, mas as probabilidades de que seja cumprida podem ser expressas por uma deprimente fórmula matemática. Aqui, a ironia que jaz sob toda a aspiração humana se revela: a busca da felicidade, como sempre, traz apenas a infelicidade no fim das contas. Mas dizer isto é o mesmo que dizer que o verdadeiro charme da democracia não é para o bico do democrata, e sim para o do espectador. Este espectador, me parece, tem à sua frente um espetáculo de primeira classe. Tente imaginar alguma coisa mais heroicamente absurda: um desfile de imbecilidades óbvias, ambições grotescas e fraudes sem fim! Mas quem se diverte com a fraude? A fraude da democracia é a mais divertida de todas ? mais até, deixando no chinelo, que a fraude da religião. Consulte o seu travesseiro a respeito das invenções democráticas mais características. Ou dos típicos profetas democráticos. Se você não pegar no sono imediatamente por falta de respostas, também não achará graça no dia do Juízo Final, quando os presbiterianos pularão do túmulo como pintos de um ovo, asas brotarão em suas omoplatas e eles adejarão rumo ao espaço interestelar, piando de alegria.

 

Tenho falado até aqui da possibilidade da democracia ser, talvez, uma doença que conheça suas limitações, como o sarampo. Mas é mais do que isto: ela devora a si mesma. Não se consegue observá-la objetivamente sem se impressionar com sua curiosa desconfiança em sí própria ? sua tendência inextricável a abandonar sua própria filosofia ao menor sinal de tensão. Não preciso lembrar o que acontece invariavelmente nos Estados democráticos quando se ameaça a segurança nacional. Todos os grandes tribunos da democracia, em tais ocasiões, respiram fundo e convertem-se instantaneamente em déspotas de uma ferocidade quase fabulosa. E nem este processo se limita aos tempos de alarme e terror: continua dia após dia. A democracia parece sempre a ponto de matar aquilo que teoricamente ama. Todos os seus axiomas se resolvem em trovejantes paradoxos, muitos reduzidos a contradições flagrantes em seus termos. Dizem eles: 'O povo é competente para nos guiar' ? desde que possamos policiá-lo rigorosamente. 'Não são os homens que nos governam, mas as leis' ? mas são homens sentados em banquinhos que, no fim das contas, decidem o que a lei é ou o que deve ser. 'A função mais alta do cidadão é servir ao Estado' ? mas a primeira constatação que lhe ocorre, quando tenta cumprir esta função, é a de sua desonra e falta de habilidade. Esta constatação costuma ter suas razões? Então a farsa fica apenas ainda mais gloriosa.

 

Confesso que, de minha parte, acho-a uma delícia. Adoro imensamente a democracia. Ela é incomparavelmente idiota e, por isto, tão divertida. Ela não exalta os parvos, os covardes, os oportunistas, os pilantras e os blefes? Sim, mas a tortura de vê-los subir na vida é compensada pela alegria de vê-los cair do galho. A democracia não é perdulária, extravagante e desonesta? É, como qualquer outra forma de governo: todas são inimigas dos homens decentes. Não são os velhacos que a dirigem? Sim, mas temos suportado esta velhacaria desde 1776 e continuamos sobrevivendo. A longo prazo, pode ser que a velhacaria seja uma necessidade inerradicável de qualquer governo e até da própria civilização ? ou que, no fundo, a civilização não passa de um colossal calote. Não sei. Só sei que, quando os chupa-sangues estão se dando bem, o espetáculo fica hilariante. Mas talvez eu seja um homem malicioso: quando se trata de chupa-sangues, minha simpatia por eles tende a ser tímida. O que me intriga é como um homem que é a favor deles e se sente como eles pode acreditar em democracia, e até se compadece quando os vê expostos como um bando de sacanas. Como um homem que é sinceramente democrata pode ser democrata?'."

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