Samba de latada?

16/10/2006
Abílio Neto

"Temo que queiram enterrar o forró como gênero musical em Pindorama. Coveiros são as pessoas que fazem o dito 'forró estilizado' porque desconhecem as raízes do forró verdadeiro e só fazem sucesso porque colocam no palco umas dançarinas com as carnes de fora. A batida deles é uma chatice só. Coveiro também é um tal de 'Cãozinho dos Teclados', que se intitula Rei do Forró, mas é um enganador. Digo sempre que é preferível escutar um roqueiro autêntico do que um forrozeiro transviado. Fico doente quando penso que entre os anos 50 e 70 do século passado foi produzida uma fabulosa discografia que hoje se encontra quase inteiramente fora de catálogo. Condena-se ao esquecimento pela indiferença das gravadoras, milhares de preciosidades. Mas as gravadoras não são coveiras porque há uma questão capitalista, além da cultural, que pode ser resumida numa pergunta: relançar pra vender a quem? Ajudam no velório os funcionários da funerária que são os compositores que apareceram a partir da década de 80 e limitaram-se a fazer xotes. Existem raras exceções, mas a maioria esqueceu o manto sagrado e colorido do forró, composto também de baião, coco, embolada, rojão, arrasta-pé, polca, xamego, rancheira, xaxado, mazurca e samba. Samba? Isto mesmo que você leu! Um samba bem diferente, embora executado por sanfona, triângulo, zabumba, cavaquinho, violão, pandeiro, banjo e clarineta ou saxofone. É o samba de latada, alusão a uma espécie de 'puxada' de chão de barro batido, coberta de palhas e sustentada por hastes de madeira, que os matutos faziam pra comemorar suas festas de batizado, noivado, casamento, etc. Esse estilo também ficou conhecido como 'samba matuto', 'samba da raça' (puro preconceito contra a raça negra), 'samba apracatado' e como 'samba brega'. Quando saiu o primeiro disco de Abdias em 1965 nesse gênero, dizem que um ouvinte da Rádio Cultura do Nordeste (Caruaru/PE), ligou pra um locutor chamado Lenildo Lima indagando quê tipo de samba era aquele que acabara de ouvir. O locutor, sem muito conhecimento, soltou no ar esse disparate: 'não sei bem o estilo, mas pela letra deve ser o samba do corno'. Realmente suas letras tratam sempre de dor de cotovelo e de maridos ou amantes traídos, conformados ou não. Os grandes nomes desse estilo de samba foram Abdias Filho, ex-marido da cantora Marinês, autor de 'Questão de Honra', um dos três maiores sanfoneiros de oito baixos de todos os tempos. E mais os pernambucanos João Silva, autor de 'Pra Não Morrer de Tristeza', gravada até por gente do quilate de Ney Matogrosso e Luiz Wanderley, autor de 'Rosário de Amargura', além do paraense Osvaldo Oliveira, autor de 'Fraguei'. Essa música não fugindo do título, conta a desventura de um homem que surpreende sua mulher na cama com outro e é um clássico no gênero. Luiz Gonzaga quando já estava muito doente, no início de 1989, gravou um desses sambas, embora traído pelo vozeirão que começava a lhe faltar. Mas como nem tudo está perdido, quarenta anos depois, o pernambucano Josildo Sá trouxe novamente a um disco essa face quase esquecida do samba. E veio como intérprete e compositor com o auxílio luxuoso do clarinetista paulista Paulo Moura, um dos maiores músicos do mundo. O homem é a gota serena, pois é também arranjador e regente. Regeu até a Orquestra Sinfônica de Moscou. Esse feliz casamento musical acontecido lá pras bandas do Rio de Janeiro é uma das coisas mais positivas da música popular brasileira em 2006 porque a tira desse marasmo em que vive. Paulo Moura 'nordestinou-se' rapidamente, adaptando-se também aos outros ritmos. Josildo, um sertanejo que parece ter sido criado com leite de cabra, tem além do vozeirão afinado, uma presença de palco impressionante, sendo atualmente o grande nome da cena musical pernambucana. O disco chama-se 'Samba de Latada' e tem produção independente. Como o Brasil oficial conhece pouca coisa do Brasil real, o disco teve uma tiragem de mil unidades apenas. Nele houve ainda participações consagradas de Arlindo dos 8 baixos, legítimo sucessor de Abdias e do sanfoneiro Genaro, um músico que nada fica devendo ao gênio Dominguinhos, ilustre filho de Garanhuns. Sobre o CD, o escritor, jornalista, pesquisador e crítico musical do Jornal do Commércio, de Pernambuco, José Teles, disse o seguinte: 'Paulo Moura toca neste disco como se estivesse animando um samba numa latada em noite enluarada, num sítio no meio do mato. Josildo Sá nunca cantou tão bem, com uma voz sertaneja e um fraseado certeiro. Não cheguei a perguntar aos dois como foi engendrada esta parceria, mas seja lá como for, com certeza jogaram a fórmula fora. Pense num disco da porra!' Recomendo o show e o disco aos amigos leitores. Soube que depois de aplaudidas e repetidas apresentações no Rio de Janeiro, os artistas foram convidados a fazer uma turnée pelo Velho Mundo. Aí Josildo Sá poderá dizer: de Tacaratu para o Mundo! Ele merece e desta vez botou pra quebrar. Como se diz por aqui 'agora ou racha ou fachêa'."

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