Sivuca

18/12/2006
Abílio Neto

"Sivuca partiu. A herança que nos deixou é o seu grande repertório gravado, onde interpretou até 'Moto Perpétuo', de Paganini. Ele foi um dos poucos músicos de sanfona que transpôs a linha musical do gênero popular nordestino para um universo de maior sofisticação, este representado pela música erudita. Sivuca era alegre, mas compôs uma música chamada 'Reunião de Tristeza'. Mas a tristeza não aparecia em qualquer reunião desde que o menino batizado como Severino Dias de Oliveira começou a tocar aos 10 anos. E mesmo a tristeza da sua partida respeitou a alegria da data de nascimento de Luiz Gonzaga, seu grande fã e amigo, levando Sivuca a 14 de dezembro deste triste 2006, e não no dia 13, até porque treze de dezembro é dia de Santa Luzia e um dos melhores forrós de Sivuca chama-se 'Forró em Santa Luzia'. Mas imaginem a festa animada nas altas esferas celestiais do Pai com a sanfona de Gonzaga, Sivuca, o canto da mineira Clara Nunes e Mário Zan também a eles se juntando, já que também viajou recentemente. Estão juntos, pois eram todos fãs uns dos outros: Mário Gennari Filho, Chiquinho do Acordeon, Orlando Silveira, Pedro Raimundo, Noca do Acordeon, Lindu, Pedro Sertanejo e Abdias Filho. Onze estrelas da sanfona, um time imbatível. Quem escolher pra reserva? Zé Gonzaga? Gérson Filho? Zé Tatu? Não, seria injusto demais! Esse que por último se foi era paraibano de Itabaiana, um 'filho da lua', como ele próprio se apelidou por ser albino. Talvez tenha sido o maior deles! O ano passado, durante o mês de junho, viajando com destino a Campina Grande em companhia da família, passei pela pequena, mas bonita Itabaiana. Disse pra minha mulher e meus filhos: Estão vendo aquele rio? Ali o grande Sivuca em época de enchentes tinha que atravessá-lo a nado com as roupas e os livros amarrados na cabeça se quisesse freqüentar a escola. Um dos meus filhos, o caçula, não sabia direito quem era Sivuca. Fiquei envergonhado, afinal aquele garoto de 16 anos que chegou ao Recife em 1945 e foi procurar uma estação de rádio pra se apresentar, não merecia isto. A emissora foi a Rádio Clube de Pernambuco e Sivuca diz como foi:

'Eu fui lá numa quarta-feira. Houve uma coisa interessante: na frente da rádio havia uma salinha com um balcão e uma mesa de telefone com a telefonista que recebia recado, uma senhora meio gordinha, dona Eliodeth. Ela estava brincando com um gatinho. Pensei que ela fosse a dona do rádio, porque no interior tem aquelas quitandas, aquelas bodegas com aquelas senhoras que ficavam na porta, esperando as pessoas pra comprar geralmente fazendo crochê, brincando com gato. Eu cheguei e disse: 'A senhora é a dona do rádio?' Ela disse: 'Não, senhor, eu sou a telefonista. O senhor quer falar com quem?' 'Eu queria me inscrever pra entrar num programa de calouros'. 'Ah, isso é com o Seu Nelson.' Aí chamou o maestro Nelson Ferreira. Ele chegou e disse: 'Quem é que toca aqui?' 'Sou eu.' 'Quer tocar uma coisinha pra mim agora?' 'Quero.' Estava com a sanfona debaixo do braço, peguei e toquei um frevo chamado 'Mexe com tudo', de Levino Ferreira [n.e. Levino Ferreira da Silva (1890-1970), compositor e instrumentista pernambucano compôs frevos, valsas, maracatus, dobrados, choros e música sacra. É o patrono do Museu do Frevo, que leva o seu nome]. Ele olhou pra mim espantado: 'E você tocando desse jeito quer ir pra um programa de calouros? Não, senhor. Um momento'. Pegou o telefone, disse: 'Ô, Antônio Maria [n.e. Jornalista e compositor pernambucano (1921-1964), autor de 'Ninguém me ama' (1951), 'Manhã de carnaval' e 'Samba de Orfeu' (ambos de 1959), e um dos cronistas mais lidos do Brasil], vem ouvir uma coisa. Venha ver esse menino que chegou aqui de Itabaiana'. Juntaram-se mais uns três. 'Toca outra música.' Aí eu toquei 'Tico-tico no fubá' a mil. Ele disse: 'Toque mais outra coisa'. Aí toquei 'Silêncio', que era uma valsa do próprio Nelson. Ele marejou o olho e disse: 'Você quer fazer um programa amanhã aqui?'. 'Faço, oxe, faço tudo!' Ele chamou Antônio Maria: 'Antônio Maria, redige um programa pra amanhã'. Nesse tempo se fazia um quarto de hora; eram três músicas que a gente chegava na rádio e tocava ao vivo. Depois passava no caixa e recebia o cachê. Foi esse programa que eu fiz. Muito bonito. Foi aí que o Nelson me pôs o nome de Sivuca. Ele ficou meu amigo e foi uma amizade muito bonita. Eu aprendi muito com ele'.

Foi na mesma Rádio Clube que Sivuca conheceu Luiz Gonzaga. Ele conta a história assim:

'Meu primeiro encontro com Luiz Gonzaga foi em 46 na Rádio Clube de Pernambuco. Eu tocava lá e ele, já famoso, foi fazer uns programas lá. Chegou e me viu tocando. Falou, 'Que diabo é isso? Como é que se toca desse jeito? Vem cá, eu preciso tocar com você. (...) Olhe, ninguém toca este instrumento como você, não, mas seja sempre simples, porque se você ficar vaidoso, as pessoas não vão lhe tolerar. E conte comigo quando chegar ao Rio'. Uma semana depois ele mandou um telegrama oferecendo um contrato pra ir para a Rádio Nacional, mas eu não podia porque tinha um contrato lá em Recife. Quatro anos depois eu estreei na Rádio Record, aqui em São Paulo, em fevereiro de 1950, com a grande Orquestra Record, dirigida pelo muito saudoso maestro Gabriel Migliori, que era um maestro por quem eu tinha muita admiração. Era um grande arranjador'.

Famoso, Sivuca foi à Europa várias vezes. Na segunda vez, ficou na França de 1959 a 1964. Era admirado por muita gente e voltou ao Brasil exatamente em 1964, por erro de cálculo, segundo ele:

'Erro de cálculo, sim, porque em 1º de abril houve aquela coisa que se chamou de revolução. Aí eu fiquei numa situação meio lusco-fusca, porque eu tinha a carteirinha do Partidão. Mais cedo ou mais tarde eu ia ser pego, no mínimo pra saber qual era a minha e tal. Mas aí eu recebi uma proposta de Carmem Costa pra ir aos Estados Unidos pra assessorá-la musicalmente, porque lá era muito pobre de músico brasileiro e eu era muito amigo da Carmem'. 'Você vai, faz os arranjos, ensaia, toca e a gente monta um grupo, porque com você, com certeza, vai haver mais cor brasileira'. Aí eu fui, tava sem fazer nada. Antes de ir aconteceu uma coisa interessante. Quando fui tirar meu visto no Consulado Americano, em Recife, o cônsul, um senhor grisalho e baixinho, chegou perto de mim e disse assim: ‘Mister Sivuca, eu vou lhe dar um visto permanente pro senhor nos Estados Unidos. É em agradecimento pela música maravilhosa que o senhor fez pra nós em Fernando de Noronha no tempo que eu era soldado baseado lá. Aquela música pra mim foi formidável. Nunca esqueci. E hoje eu estou cara a cara com a pessoa que mais satisfação me deu em Fernando de Noronha. Por isso vou lhe dar o permanente.’ Aí me deu.

Sivuca ficou treze anos nos Estados Unidos, tocou com Miriam Makeba, sendo seu maestro e arranjador, inclusive da famosa música 'Pata, Pata'. Harry Belafonte 'tomou-o' de Miriam após uma excursão à Suécia. Nos States ainda participou de inúmeros shows e gravações com músicos americanos, com destaque para a notável 'Adeus Maria Fulô', dele e de Humberto Teixeira. Na volta ao Brasil, em 1977, Sivuca fez uma parceria famosa com Chico Buarque naquela que é considerada uma das obras primas de Chico, a letra da música 'João e Maria':

'Eu estava em casa, em casa não, lá no pequeno apartamento onde eu morava, e estava com o teclado ligado. Comecei a tocá-lo. Me lembrei da música, de um tema que eu havia escrito em 1947, 'João e Maria', não era 'João e Maria' ainda, não. Glorinha ouviu e disse: 'Sivuca, que música é essa tão bonita?' 'Ah, Glorinha, é uma música que eu fiz em 47'. –  Eu usava a música pra fazer serenata lá em Recife. Aí Glorinha disse, 'Grave isso imediatamente e entregue ao Paulo Pontes pra passá-la ao Chico'. Eu gravei toda bonitinha, com a segunda parte e a mandei para o Paulo Pontes. E o Chico recebeu. Duas semanas depois, disse: 'Sivuca, fiz uma letra pra essa música, mas agora ela não tem nada a ver com Elizeth Cardoso.' 'Está certo.' Ele, por telefone, cantou com a letra. Eu fiquei mudo, sem saber o que dizer dada a surpresa da letra. A letra levou a música por um caminho completamente diferente do que eu pensava. 'Chico, essa música é um primor, é não, virou um primor com essa letra.' 'Pois é, que tal a Nara Leão gravar essa música?' 'Vai ser maravilhoso.' 'Mas quem vai fazer o arranjo é você.' 'Tá bom, Chico.' Me encontrei com Chico e escrevi a música que até então não havia sido escrita. Levei pra casa, fiz o arranjo, gravamos a música. Ninguém esperava. A música no vinil que a Nara lançou era a de número 6 do lado B. E foi a música que levou o disco de Nara Leão ao sucesso. Aí, pronto, quatro anos depois, eu encontrei o Chico. 'Poxa, Sivuca, a única música que nós fizemos como parceiros virou um carma na minha vida. Tenho que cantá-la sempre.' 'Pois é.' Ele seguiu, 'Vamos fazer mais.' Nunca mais a gente se encontrou, mas a música virou um clássico. E a gravação realmente ficou muito bonita. Foi feita com João Donato, teclado, Luizão Maia, contrabaixo, Meireles, flauta, eu, violão e sanfona, e o Paulinho Braga, bateria. Foi essa formação musical de 'João e Maria' com Nara Leão e Chico cantando.

Há uma coisa que ninguém pode tirar jamais do Sivuca: o forró 'Feira de Mangaio', dele e de sua mulher Glorinha Gadelha, é o mais belo forró de todos os tempos, batendo até o famoso 'Forró no Escuro' de Luiz Gonzaga. E com o canto da mineirinha Clara Nunes que também se foi faz alguns anos, a música ficou realmente encantadora. Obrigado, Sivuca, por você ter existido:

'Foi um prazer. Fiquei muito feliz de falar o que veio de dentro da minha alma, que tem muito mais alegria do que sofrimento. Aliás, tem tanta alegria, que só uso o sofrimento como ingrediente pra ajudar as flores do meu jardim nascerem com mais força'.

Sivuca morreu de câncer aos 76 anos em João Pessoa/PB. Era também exímio violonista. No disco dele com Rosinha de Valença, gravado ao vivo em 1977, executa brilhantemente a música ‘Reunião de Tristeza’. Nota: texto inserido com respostas de Sivuca retiradas da entrevista que deu em 2004 ao site Gafieiras, onde poderá ser lida por completo."

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