Falecimento - Zeno Veloso

6/4/2021
Elisa Bilaqui

"Trezentos passos a caminho da casa do mestre Zeno Veloso. Para o professor Christiano Cassettari. Fiquei arrasada — e não fui capaz de dormir, depois de então —, ao ler, alta madrugada, duas linhas que, horas antes, haviam-me sido enviadas por um grande amigo paraibano, procurador em Votuporanga/SP, a poucos quilômetros de distância daqui de casa, dando conta da triste notícia do falecimento, na véspera, do dr. Zeno Augusto Bastos Veloso, sem especificar, porém — como se me fosse possível para lá acorrer, para velar-lhe o corpo —, o local exato, na capital paulista, para onde, dez ou quinze dias antes, o paciente houvera sido transferido, via aérea. De nada adianta, neste momento de dor para tantos órfãos, seus discípulos, eu me lembrar do baluarte do Direito Civil e do Direito Constitucional Brasileiro, do jurista dos mais citados nos votos dos ministros da Excelsa Corte, do maior expoente das notas que já viveu neste país, da mais vívida representação do brilhantismo e força do Pará. Eu bem poderia fazer o esforço, mas não vou sacrificar a atenção do enlutado leitor destas linhas, na tentativa de tecer as costumeiras loas ao dr. Zeno Veloso, costurando parágrafos infinitos, com a recitação de seus tantos títulos e do altíssimo nível que ele alcançou nas tão diferentes atividades a que se dedicou. Outros já o terão feito, a essa altura, muito melhor do que eu jamais poderia fazê-lo. Prefiro evocar, de memória, alguns dos traços de sua trajetória de vida, na forma das suas muitas vivências: o menino de Belém, o estudante da cidade de Pedro (Petrópolis), o marido de Dona Lílian, o pai de Lorena e de Guy, o genro do pioneiro da Força Aérea Brasileira, o contraparente de cardiologistas cariocas de escol, o conhecedor de todos os personagens da política nacional, o amigo queridíssimo de toda a sociedade de todas as cidades por onde transitou e em que morou, o centro das atenções de todas as rodas de conversa que animou, de todas as salas de aula e auditórios em que falou, de todas as reuniões que promoveu, fosse em sua casa, fosse no cartório em que trabalhou, por mais de meio século. Ele conhecia vivos e mortos. Tinha memória prodigiosa. Foi capaz de recordar-se da relação de amizade de um tio materno meu, o advogado e jornalista paraibano Ignácio de Aragão (1921-2003), de saudosa lembrança, com o ministro acriano Jarbas Passarinho (1920-2016), amigo dele, cuja bela casa de família, com frondosa árvore fincada ao pé, no jardim, ainda enfeita a mesma avenida em que ambos, o notário e o governador do Pará, viviam em Belém. Foi amigo do hoje cardeal e arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta, nascido em São José do Rio Pardo, bispo em São José do Rio Preto e arcebispo de Belém, sucedido, na função, por Dom Antônio Taveira, igualmente seu amigo e a quem indaguei, aflita, como sua vizinha de poltrona, em meio à turbulência de um voo noturno, na rota de volta a São Paulo, se tínhamos, em comum, o mesmo Zeno (Deus, em grego) e de quem aprendi ser ele ainda outro amigo do dr. Zeno Augusto. Bem, quando se têm amigos assim, com esses nomes, pode-se estar sossegado de que, não importa o porto, o avião fará bom pouso. Com ele, podia-se estar à vontade, para esclarecer qualquer mínima dúvida, à que ele respondia, com paciência e simplicidade, fundamentadamente, fosse de que assunto fosse, não apenas de Direito, nem dentro de só um campo do Direito, menos ainda somente do que se publicasse em português. Ele sabia tudo de tudo. Foi leitor de todos os livros, de História inclusive, até do primeiro que li, deslumbrada, sobre a História de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, de Leandro Tocantins, por cuja pena descobri que, nessa cidade, o irmão do Marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, foi feito um quase vice-rei, que para lá levara uma verdadeira Missão Artística Italiana, com geógrafos, escultores, pintores, arquitetos e astrônomos, do que resultaram edifícios históricos majestosos, com frontispícios que perpassei, em uma tarde de domingo, caminhando desde o Museu Emílio Goeldi, passando pelo Palacete Bologna e chegando às mangueiras das cercanias do cinema inaugural Olympia e do famoso Theatro da Paz. Foi quando, às vésperas do meu primeiro embarque para a região Norte e poucos dias após os quatrocentos anos da fundação desta que é, para mim, uma Lisboa tropical — eu sempre amei Lisboa e Rio —, apaixonei-me pela capital do Pará. Belém me encheu os olhos com sua brasilidade amazônica e conquistou, em definitivo, meu coração. Das asas do aeroplano, no pouso, a cidade parece uma flor, a flutuar, no encontro das águas do Guamá com ainda outras águas caudalosas. Sempre me hospedo no mesmo lugar, em Nazaré, e não me canso das árvores que nunca cabem nas fotos. As ruas me trazem à memória flashes das congêneres ruas internas e sombreadas de Ipanema. Apesar de não ser possível avistar a Basílica, tranquiliza-me saber que todas as janelas do hotel voltam-se para a Capela de Nazinha e para a esquina do edifício de pintor de sobrenome italiano e de largas placas de cimento armado, em cuja unidade do primeiro andar morava o Mestre. O Círio passava na frente, abençoando-o! Zeno Veloso representou, como ninguém, o Brasil e o seu Estado. Foi assessor da Assembleia Nacional Constituinte e relator da Constituição do Pará, cujos trinta anos ele recém comemorara, eu li, depois. Dono de uma cultura sem igual e um esteta apurado, dotado de fé, tanto notarial, quanto religiosa, imprimiu um caráter perene às mais importantes manifestações da vontade do ser humano, captando-lhe a vida em plena lucidez, eternizando-a, em forma de escritura cuidadosamente elaborada e assinada por ele. Quando dr. Zeno me via, sempre me indagava a mesma pergunta: — Você não é 'a' aluna do Cassettari? Ele sabia que onde eu estivesse, como aluna da pós-graduação do Damásio de São Paulo, ele podia contar com eu ter comparecido à aula, munida com bem seis exemplares de seus muitos livros, um de cada, para o caso de ele ou de meu querido professor precisar mostrar algum deles, para o pessoal em sala ou para os colegas do ensino à distância. Ele nunca se lembrava do meu nome, embora me garantisse que houvesse uma Elisa na família. Cultivava os amigos e mimava os mais chegados, com um isopor dos melhores sorvetes da Cairu belenense, comprados no mesmo dia do desembarque, horas mais tarde, em São Paulo. Eu mesma o surpreendi, uma vez, em plena alameda Santos, em Sampa, a um passo de entrar no então escritório de um dos grandes civilistas seus amigos, com a caixinha térmica na mão. A última vez em que o vi foi em Belém, na manhã de data frequentemente inesquecível, por causa da mística envolvendo o número e o dia da semana. Eu cumpria um compromisso burocrático pela manhã, quando, lendo o jornal 'O Liberal' no qual ele mantinha uma coluna jurídica atualíssima, eu soube que, na noite daquela fatídica sexta-feira, 13, dr. Zeno daria uma palestra sobre paternidade socioafetiva, no auditório da sede de um grande grupo empresarial do Pará. Para comemorar suas tantas décadas de vida, os líderes empresariais escolheram, para falar no auditório da sede administrativa, ninguém mais, ninguém menos do que um dos maiores paraenses. Combinei com o taxista do hotel, de ir-me levar, buscar, e, de lá, fazer o transfer para o aeroporto. Fui de mala e tudo. Valeu a pena. Zeno Veloso deu o habitual 'show', começando por lembrar que o pai de Jesus, o mesmo José que celebramos em 19 de março os católicos, tinha sido o primeiro pai afetivo da História — algo aparentemente óbvio, mas que pode passar despercebido, embora seja essencial para quem quer retraçar o percurso histórico da socioafetividade paternofilial no Direito. Agora que ele não mais está entre nós, embora eu tenha certeza de que, de onde ele estiver, ele ilumina, todo o tempo, com sua notável cultura geral e seu notório saber jurídico, os notários e os civilistas do Brasil, vai ser triste chegar a Belém e refazer os trezentos passos desde o hotel, passando pela rádio ao lado, dobrando a esquina, pulando valas fundas e boas de quebrar a canela, virando à direita no casarão branco de um banco, pisando cuidadosamente enormes pedras desiguais na frente de uma escola amarela com frisos azuis, até chegar, finalmente, à esquina da casa do mestre, para apresentar-lhe, com o coração partido, uma pequena e silenciosa homenagem, com o mais puro sentimento de gratidão por tudo o que ele foi e ensinou."

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