Pílula de farinha

9/2/2007
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"Muito estranha a decisão da 3ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, que modificou a sentença do Juiz da 3ª Vara Cível da Capital, que havia decidido que uma consumidora, que havia utilizado o anticoncepcional Microvlar, da Schering, a pílula de farinha, e engravidou enquanto tomava o medicamento. Na sentença de primeira instância, a Schering estava obrigada, além do dano material (pensão mensal de 2 salários mínimos e do pagamento do plano de saúde até a criança completar 21 anos), o dano moral, esse arbitrado em R$ 350 mil. O tribunal modificou a sentença, afastando a condenação por dano moral. A interpretação dada ao caso pelo tribunal é a que o nascimento de uma criança é fonte de alegria e não de sofrimento exigido para a lesão moral indenizável. 'Uma vida foi trazida para a família e o amor ao filho é conseqüência natural, embora não desejado inicialmente', no entender do Des. Beretta da Silveira. O relator, Des. Donegá Morandini, que foi voto vencido na defesa da tese da ocorrência da lesão moral, afirmou que 'nem a alegria pelo nascimento do filho seria capaz de afastar os sentimentos que envolveram a autora à época dos fatos, que influíram negativamente em seu comportamento psiquico'. Tais sentimentos, explicou, foram no sentido de que a gravidez acarretou, no mínimo, aflição, angústia e preocupação com o número de filhos. Filhos, dizia Vinicius de Moraes no seu 'poema enjoadinho', melhor não tê-los! 'Mas se não os temos, como sabê-lo’, acrescentando: 'E então começa a aporrinhação: cocô está branco, cocô está preto, bebe amoníaco, comeu botão. Filhos? Melhor não tê-los. Noites de insônia, cãs prematuras, prantos convulsos...' Mas, a verdade é que uma pessoa que adquire anticoncepcionais e os toma regularmente, não quer ter filhos. Esse é o efeito esperado do medicamento. E tal decisão cabe, unicamente, à pessoa que toma esse tipo de medicamento. Se todos os dias se vê o número de mulheres que defendem o direito a abortar, o que dizer das que, preventivamente, tomam providências para evitar a concepção? Não parece razoável que a questão, entregue à decisão de desembargadores, deva ser analisada sob a ótica da felicidade e alegria em ter filhos, o que somente acontece com quem os deseja, e não para quem deliberadamente pretendeu evitá-los, por quaisquer motivos. Também parece estranho o argumento no sentido de que a mãe, naturalmente, virá a amar o filho, mesmo inicialmente indesejado. Se não vier a amá-lo, então a indenização seria devida? Cada pessoa sabe, ou deve saber o que quer e o que não quer, e tem direito a tal decisão, pelo motivo que for, ou por já ter outros filhos, ou por não ter nenhum e considerar que não deseja tal encargo, ou por achar que não poderá mantê-lo convenientemente etc., etc. A parte da sentença de primeira instância que foi mantida, pagamento de 2 salários mínimos e do plano de saúde até a criança completar 21 anos, obviamente não cobre as despesas obrigatórias com a manutenção de um filho. Se, por exemplo, os pais pretenderem que seu filho fique, até os seis anos em uma creche particular, só aí haverá um custo de aproximadamente R$ 1 mil por mês, ou R$ 72 mil no curso do período, que é o valor, por exemplo, de um apartamento pequeno. Isso sem contar com despesas com fraldas, mamadeiras, chupetas, vacinas, festinhas de aniversário, consultas tratamentos médicos, roupas adequadas para a mãe grávida, quarto do bebê, artigos de higiene, vitaminas, gastos com educação e atividades, presentes, diversão etc. Ou será que os Drs. Desembargadores concluíram que 2 salários mínimos cobrem todas as despesas? Ou a família, que não pretendia um novo filho, deve ficar alegre por tê-lo e só? Qualquer pessoa que pretenda ter um filho começa por ter em mente as condições financeiras para criá-lo até que possa se sustentar sozinho, já que, como todos sabem que um filho representa despesas adicionais consideráveis no orçamento de um casal. Cálculos de Marcos Silvestre, coordenador executivo do CEFIPE – Centro de Estudos de Finanças Pessoais e Negócios, mostram que uma família de classe média, com renda familiar ao redor de R$ 4 mil reais mensais, deve gastar algo em torno de R$ 250 mil reais com um filho, do nascimento até o término da faculdade, valor muito superior ao garantido pela condenação pelo dano material. Mas, obviamente o que importa ao caso, não são as despesas que teria o casal com a criação de um filho que não desejava, mas o direito de escolher não tê-lo, e ser obrigada a tê-lo por fato da responsabilidade de terceiro. Só o fato de terem os pais que redefinir prioridades estabelecidas, substituindo despesas que aprovaram por outros que irão surgir, em montante ignorado, uma reviravolta total no planejamento familiar, por si justificaria a aflição, angustia e preocupação sentida, que dariam ensejo ao dano moral sofrido. Até a atriz Maitê Proença, que alegou ter sido sua imagem profissional arranhada por ter promovido o anticoncepcional em questão, teve ganho de causa havendo sentença que condenou a mesma Schering a pagar-lhe, por dano moral, a quantia de R$ 320 mil. E isso por ter tido sua imagem arranhada apenas, e não obrigada a criar um filho que pretendia evitar. Além disso, dezenas de outras mulheres também foram indenizadas pelo fato de o anticoncepcional não ter propiciado o efeito desejado. A decisão ora comentada, que inaugura nova jurisprudência para o caso, a meu ver, não tem qualquer sentido e deve ser, espera-se, novamente reformada, de modo a compelir a empresa a pagar por todos os danos causados, materiais e morais."

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