Órgãos

5/3/2007
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"Difícil a vida no Brasil? Pior no Paquistão. Lá no Paquistão não há Leis que proíbam as vendas de órgãos, o que faz com que paquistaneses pobres vendam seus órgãos (principalmente rins) para pagar dívidas ou obter dinheiro para suas famílias e o que faz, também, que paquistaneses ricos e muitos estrangeiros (do Golfo, da Grã-Bretanha e do Canadá, por exemplo) compareçam a hospitais paquistaneses particulares para transplantes de rins daqueles 'doadores'. Uma notícia que circulou no ‘Espaço Vital’, dá conta de que uma mulher paquistanesa procurou por tratamento para um problema urinário, em janeiro, quando ficou sabendo que um de seus rins havia sido extirpado. Dada a queixa, verificou-se que o marido dela e dois parentes dele a haviam levado a um hospital, para tratamento de uma violenta surra do cônjuge, ocasião em que, por ordem do marido, um de seus rins foi extirpado e, em seguida, vendido. O marido foi posto em liberdade, após pagar fiança, por certo com o produto da venda do rim. Os outros dois continuam presos, por falta de dinheiro para fiança. Mas, podem obtê-lo vendendo cada qual um de seus rins, assim como o marido poderá pagar a indenização que será devida à esposa, também com a venda de um de seus rins. Daí estarão de volta à praça os três, cada qual com um rim a menos, mas aptos a tentar, de novo, vender rins de terceiros. Mas, na verdade, isso não acontece só no Paquistão, mas praticamente em todo o mundo, inclusive no Brasil. No nosso país, a Lei Penal proíbe o comércio de órgãos, cominando pena de 3 a 8 anos para quem comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, incorrendo na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação. Isso não tem impedido, no entanto, que brasileiros vendam seus próprios órgãos. Foi muito comentado o caso de brasileiros de Pernambuco que concordaram em ser levados para Durban, na África do Sul, para vender um de seus rins por valores entre 6 e 10 mil dólares. Esses brasileiros foram contatados por uma organização internacional, voaram para Durban, venderam seus rins, receberam o pagamento e voaram de volta para o Brasil, onde foram formalmente acusados, pelo Superintendente da Polícia Federal em Pernambuco por tráfico de órgãos. No entanto, foram todos absolvidos, tendo em vista que a Juíza Federal Amanda Lucena aceitou a justificativa do Ministério Público Federal de que os réus eram moradores da periferia da Capital, concordaram com a proposta de comercializar um dos órgãos porque passavam por dificuldades financeiras e não tinham consciência das implicações jurídicas e nem das complicações que poderiam decorrer das cirurgias às quais se submeteram. Esse precedente pode vir a oficializar, pelo Judiciário, a venda de órgãos, não obstante a Lei seja clara a respeito e, ao menos no nosso sistema legal, ainda se encontra em vigor o princípio pelo qual 'ignorantia iuris allegari non potest' (não se pode alegar a ignorância da Lei), ou 'ignorantia legis neminen excusat' (a ignorância da Lei a ninguém escusa), princípio esse contemplado na Lei de Introdução ao Código Civil (art. 3º) e no antigo Código Penal (art. 16), que previa 'a ignorância ou a errada compreensão da lei não eximem a pena'. Sobre o assunto, vale lembrar que Francisco Campos, na sua exposição de motivos, ao fazer referência à ignorância ou à errada compreensão da Lei Penal, exemplificou com hipóteses motivadas por força maior ou por evidente rusticidade, e que Nelson Hungria, ao tratar da rusticidade, se referia a um 'Homo sylvester' (ou homo rusticus), inteiramente desprovido de aquisições éticas do civilizado 'homo medius', pelo que se pode concluir que esse (homo sylvester ou rusticus) não é o caso de pessoas que viajam para a África do Sul para ganhar alguns milhares de dólares, ainda que morem na periferia de Recife. Até porque principalmente em um país que conta com uma imensa população que necessita de dinheiro, esse precedente pode vir a ser utilizado por outras pessoas, derrogando a proibição de venda de órgãos. É o caso, por exemplo, de um aposentado de Mato Grosso do Sul, que oferecia à venda um rim e uma córnea por R$ 350 mil, dinheiro que necessita para custear tratamento de sua esposa com 73 anos. Ou o caso do Paulista Paulo Cesar Rodrigues da Silveira, de 27 anos, que colocou uma placa, em uma grande avenida, de papelão, com a inscrição: 'Vendo meu rim. R$ 70.000,00'. Diante disso, uma pergunta vem sendo cada vez mais feita: a venda de órgãos deve ser permitida? E, outra ainda: Deve o Estado regulamentar o comércio de órgãos? Um dos mais respeitados transplantadores de rins dos Estados Unidos defende essa idéia, não só porque as estratégias para aumentar as doações de órgãos de cadáveres têm fracassado (e as filas de espera só aumentam), mas também porque o mercado negro de órgãos só cresce no mundo todo. Esse mesmo médico acha que o Estado já funciona como intermediador, atualmente, ao determinar quem tem direito a receber uma diálise e quem não tem. Informa ele, ainda, em abono de sua tese, que no Irã os doadores de rins são pagos e é o Irã a única nação sem fila de espera. A questão não é absurda se se pensar que há mais de 30.000 pacientes na fila aguardando sua vez para o transplante, e se considerarmos que em 2006 foram realizados apenas 3.362 transplantes, a maior parte de doadores vivos, o que é prova da precariedade da captação de órgãos de cadáveres. Então, a história é essa. No Brasil a fila de espera pode demorar de 7 a 10 anos e há uma intensa rede que alimenta a rota do tráfico de órgãos, que inclui o Brasil. O motivo desse comentário é exatamente provocar a discussão do assunto, já que muitos como eu conhecem de perto pessoas que, para continuar vivendo, e esperando o transplante, dia sim dia não têm de se submeter à diálise."

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