Caso Jacinta

31/3/2023
Simone Cristine Araújo Lopes

"Estando em Vancouver, em 2021 e 2022, para estudos, visitei a estátua do famoso 'Gassy Jack'/John Deighton (1935-1875), no centro daquela bela cidade da British Columbia. Porém, na segunda vez que lá estive, qual não foi minha surpresa ao levar uma amiga para conhecer o monumento, e constatar que desapareceram com a obra. Fui pesquisar e descobri, com os canadenses locais, que isso se deu por conta de uma manifestação que exigiu a retirada da homenagem no bojo de vários escândalos, alguns envolvendo gravemente a Igreja Católica e o governo canadense em abusos de todas as ordens, especialmente com crianças indígenas que eram forçadas à 'civilização', obrigando-as a esquecerem sua origem, etnia, história e cultura, nos séculos passados. Lá, como aqui no Brasil, houve leis que proibiam, por exemplo, indígenas de dançarem e cantarem suas músicas em praças públicas em tempos passados. Tal como fizemos, cruelmente, com nossos indígenas e negros. Esse foi um dos motivos da visita do Papa Francisco ao Canadá, recentemente: para pedir perdão por esses erros do clero do passado. A razão de retirarem o monumento em homenagem a esse inglês que imigrou para o Canadá era que ele era considerado um sujeito caricatural, de boa vida, dono de frequentado bar na região até que, no contexto de contestação histórica, há controvérsias sobre o 'casamento' que ele teria contraído com uma jovem indígena que, em verdade, teria sido forçada a isso dentro da perspectiva de 'civilizar os índios'. Todos os anos, no Canadá, desde então, são celebrados pela comunidade indígena e ativistas apoiadores como dia de memória pelos assassinatos e desaparecimentos de mulheres e garotas indígenas. Eu proporia uma alternativa a, simplesmente, tirarem o nome do professor Amâncio de Carvalho da sala da faculdade de Direito da USP, lugar que amo e onde me doutorei. Tirar é relegar ao puro esquecimento. O importante é 'religar', ou seja, nomear a sala de homenagem hoje pertencente ao professor com o nome da verdadeira mestra de todos os alunos e do próprio professor, a Senhora Jacinta Maria de Santana. Afinal, foi com a morte dela que o professor pode demonstrar as possibilidades da arte do embalsamento e, com a licença do corpo inerte dela, tantas vezes injusta e imoralmente vilipendiado, mostrar a milhares de alunos e alunas, as nuances próprias na prática da Medicina Legal que visa, em verdade, auxiliar com a ciência a descoberta dos autores de crimes contra a vida nos Institutos Médico-Legais Brasil afora. Nas Faculdades de Medicina, o corpo inerte das aulas de anatomia auxilia para salvar vidas, historicamente. E há política ética específica para o tratamento desses 'professores/as silenciosos/as'. A faculdade de Medicina da UFMG tem um letreiro sobre a porta de entrada da sala de anatomia: 'HIC MORS GAUDET SUCURRERE VITAE', isto é, 'aqui a morte se alegra em salvar vidas'. Seria uma reparação histórica, a meu ver, digna de nota. E o professor continuaria ligado à sala, porém restabelecendo a hierarquia dos valores éticos. Lembrando que há quem defenda que os valores de uma sociedade possuem força normativa, tal como princípios e regras.

É minha respeitosa opinião."

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