Leis 16/8/2007 Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL "As Leis e as salsichas. Ou o despreparo dos legisladores. Atribui-se a Otto Von Bismark, o príncipe Otto Leopold Eduard Von Bismark-Schönhausen, o Chanceler de Ferro, a frase 'je weniger die lente davon wissen, wie wüste und gesetze gematcht werden, desto besser schlafen sie' ou, em português, 'quanto menos o povo souber como são feitas as salsichas e as leis, mais dormirá tranqüilo'. Como Otto Von Bismarck viveu de 1/4/1815 a 30/7/1898, ainda que não se saiba exatamente de quando é a frase, certamente é muito antiga. De lá para cá, a indústria de salsichas melhorou muito, tornando-se uma indústria inteiramente confiável, diferentemente do que acontece com as Leis, cuja elaboração segue regras ainda rudimentares, que não garantem, de maneira alguma, a legitimidade do resultado final, ainda que em um regime democrático a legitimidade das Leis seja de importância vital. E para que as Leis sejam legítimas, devem ser elaboradas por quem conheça o assunto, por quem tenha uma visão de conjunto, uma visão sistemática, que saiba que o sistema de Leis é concatenado, conjugado, que quando se elabora uma Lei não se visa apenas a solução de um problema, mas que há que ajustá-lo a todo um sistema de Leis existente. Senão, serão provocadas uma série de aberrações, como as que são vistas, todos os dias, no trabalho legislativo, dos nossos legisladores, não raro movidos apenas por diferenças ideológicas, partidárias e por interesses privados. Em 2005, o ex-deputado Roberto Gouveia (PT/SP) produziu o Projeto de Lei 5.356/2005, que dispunha sobre embalagem de medicamentos genéricos isentos de prescrição médica. Em seu artigo 1º, o referido projeto previa que: 'Art. 1º - Fica permitida a semelhança de embalagens entre os medicamentos de referência e o genérico sem exigência de prescrição médica, inclusive no que tange às cores, podendo ainda na embalagem do medicamento genérico indicar a marca do medicamento de referência...' Na 'justificação', o deputado explicava que, existindo na embalagem do produto genérico o nome do medicamento de referência, poderia o consumidor comparar os preços de ambos com maior facilidade. E listava o deputado, na 'justificação', uma série de medicamentos de referência, famosos, como Luftal, Anador, Aspirina C, Doril, Sonrisal, Engov, Gelol e outros. Em outras palavras, o Projeto de Lei pretendia que fosse liberada a venda de medicamentos genéricos, em embalagens semelhantes às dos medicamentos de referência, inclusive nas cores, que trouxessem estampadas até as marcas famosas dos medicamentos de referência, para concorrer no mercado... com os próprios medicamentos de marca. Aquele Projeto foi a plenário em 2/6/2005, percorreu uma série de etapas, foi para a mesa diretora da Câmara, seguiu para a Comissão de Seguridade Social e Família, foi para a Coordenação de Comissões Permanentes, voltou para a Comissão de Seguridade Social e Família, recebeu emendas, teve parecer aprovado por unanimidade, foi encaminhado para publicação, seguiu para a Comissão de Constituição da Justiça e Cidadania, teve relator designado... e foi arquivado em 31/1/2007, por não ter sido reeleito o deputado que apresentou o Projeto. Todo Projeto de Lei tem de, necessariamente, mencionar a legislação envolvida. No caso, a legislação mencionada foi a Lei 9.787/99 (que dispõe sobre a vigilância sanitária e estabelece o medicamento genérico) e a Medida Provisória 2.190/2001 (que alterou dispositivos de Leis anteriores que definiram o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária). Esqueceu-se o nobre legislador, ou sua assessoria legislativa, e ninguém disso se deu conta, que está em pleno vigor a Lei de Propriedade Industrial, nº 9.279, de 14/5/1996, que regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial que, em seu artigo 2º, dispõe que: 'Art. 2º. A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se mediante: ... III. concessão de registro de marca; ... V. repressão à concorrência desleal.' A Lei 9.279, também conhecida como o Código da Propriedade Industrial, no título III – DAS MARCAS, Capítulo I, Seção I, dispõe: 'Art. 122. São suscetíveis de registro como marca os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais.' 'Art. 123. Para os efeitos desta lei, considera-se: I. marca de produto ou serviço: aquela usada para distinguir produto ou serviço de outro idêntico, semelhante ou afim, de origem diversa;' ... 'Art. 125. À marca registrada no Brasil considerada de alto renome será assegurada proteção especial, em todos os ramos de atividade.' 'Art. 126. A marca notoriamente conhecida em seu ramo de atividade nos termos do art. 6o.bis (I), da Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial, goza de proteção especial, independentemente de estar previamente depositada ou registrada no Brasil.' 'Art. 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional...' 'Art. 130. Ao titular da marca ou ao depositante é ainda assegurado o direito de: III. zelar pela sua integridade material ou reputação.' A mesma lei que, como se disse, está em pleno vigor, dispõe, em seu Capítulo III, sobre os Crimes Contra as Marcas: 'Art. 189. Comete crime contra registro de marca quem: I. reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão... Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.' 'Art. 190. Comete crime contra registro de marca quem importa, exporta, vende, oferece ou expõe à venda, oculta ou tem em estoque: ... II. produto de sua indústria ou comércio, contido em vasilhame, recipiente ou embalagem que contenha marca legítima de outrem. Pena: detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa.' 'Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: ... III. emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem;' 'Art. 196. As penas de detenção previstas nos Capítulos I, II e III deste Título serão aumentadas de um terço à metade se: ... II. a marca alterada, reproduzida ou imitada for de alto renome, notoriamente conhecida, de certificação ou coletiva.' Melhor explicando, o Projeto de Lei referido pretendia, singelamente, revogar o Código da Propriedade Industrial, que sustenta toda a legislação da propriedade intelectual no país, coerente com a legislação específica internacional, simplesmente porque seu autor não tinha qualquer conhecimento do assunto ou, se tinha, porque estava interessado em algo mais sobre o que talvez não valha a pena nos estendermos aqui. Uma coisa é certa, a 'justificação' no sentido de que a proposta visava permitir que o cidadão localizasse e visualizasse medicamentos idênticos não tem qualquer procedência, já que as vendas de produtos genéricos crescem de forma acentuada, sem que se tenha qualquer notícia de nenhuma dificuldade nesse sentido. De qualquer forma, cometer um Projeto de Lei como o comentado, demonstra o absoluto despreparo do legislador, não só daquele legislador em especial, mas dos legisladores de uma forma geral, que é o que se nota não só por essa, mas pela coleção de aberrações que são vistas todos os dias, principalmente em se considerando a longa tramitação do Projeto sem que nenhum outro legislador apontasse a existência da legislação existente, de propriedade industrial, antecedente à matéria colocada em votação. No momento, há até um comercial sendo exibido na televisão, no qual um consumidor vai a uma farmácia, e pede um medicamento para dores musculares, pois que caiu em uma festa. E o farmacêutico lhe oferece uma pomada, em uma embalagem verde, cuja marca é Gelol-Falso. E o consumidor reclama, diz que não quer aquele, que quer o Gelol verdadeiro. Mas, a coisa não ficou assim. Tendo sido aquele Projeto arquivado, por não ter sido reeleito o deputado que o apresentou, um outro deputado, Dr. Rosinha (PT/PR), aproveitou o texto e apresentou um novo projeto, de nº 23/2007, absolutamente idêntico, com a mesma 'justificação' e a mesma relação de medicamentos de referência 'atingidos'. Já estava pronto mesmo. Por que não? E lá vai o Projeto, seguindo o mesmo tortuoso caminho legislativo, tendo sido citadas apenas as duas Leis antes mencionadas, sem qualquer referência à Lei de marcas, ainda que o Projeto verse sobre marcas e embalagens, e já está para parecer do Relator, provavelmente um outro legislador que não tem a mais remota noção sobre a legislação que já existe no Brasil sobre propriedade industrial/intelectual, e nem uma pálida notícia do sugerido. O registro de marca é um direito de propriedade, na forma do que dispõe a Lei 9.279/96 e que confere ao seu titular o direito de uso exclusivo, o que, contrario sensu, implica no direito de impedir seu uso por terceiros. É crime a reprodução ou a imitação de marcas registradas, como o são todas as listadas na justificação dos dois Projetos de Lei mencionados. Além disso, são registráveis, também, como marcas, as apresentações das marcas nas respectivas embalagens, e já existem inúmeras decisões de nossos tribunais envolvendo o que se chama de conjunto-imagem, ou trade-dress, que pode ser definido como um conjunto de características que podem incluir, dentre outras, uma cor ou um esquema de cores, formas, embalagens, frases, sinais, ornamentos, ou seja, tudo o que pode identificar determinado produto. Em outras palavras, exatamente o que diferencia um produto dos demais. Os casos judiciais no Brasil, que dizem respeito ao trade-dress, que já foram decididos pelos nossos tribunais, se referem, em sua maioria, exatamente a embalagem de produtos farmacêuticos, alguns deles pela pretendida confusão entre o genérico e o de referência. Daí, ignorando toda a legislação existente, toda a problemática da propriedade industrial brasileira e internacional, é produzido e reproduzido um Projeto de Lei derrogando tudo o que antes foi duramente conquistado. Registros de marcas deixam de valer, a propriedade das marcas e abolida, o direito de uso exclusivo é eliminado. Simples assim. Essa situação, de Projetos de Lei absurdos, elaborados por políticos despreparados, tende a se eternizar, mantidas as regras atuais. Dizia um antigo humorista que quem inventa é o inventor e, como se sabe, quem faz as Leis é o legislador. E, se isso é assim, se deve ser assim, é necessário que os legisladores ao menos saibam o que fazem, ou seja, que conheçam o mínimo necessário que se espera de quem pretenda elaborar Leis. Israel Domingos Jorio, advogado em Minas Gerais e Espírito Santo e professor de Direito Penal, teve um excelente artigo publicado, em 2005, sob o título 'O Panorama da Inversão', de onde se extrai: 'Ter legisladores absolutamente leigos é como ter um exército composto por crianças mortalmente armadas. Qual é a lógica do sistema? Àquele desprovido de conhecimentos jurídicos elementares incumbe a criação das complexas leis que serão aplicadas sobre todos, inclusive sobre os especialistas? ............................................................................................ Deixar legislar um indivíduo inculto, que desconhece os preceitos mais básicos e os princípios fundamentais da Ciência do Direito, é um indizível retrocesso. Quando se lhe é apresentada uma lei, ele não sabe do que se trata. Quando se lhe pede o voto, ele não sabe nem sobre o que votar. Ele não faz a menor idéia da consequência dos seus votos. Porque se exige conhecimento jurídico para aplicar a lei, mas não para criá-la?' Os dois Projetos de Lei comentados acima, cuja nocividade e absurdidade é evidente, já que atropelam legislação existente e há mais de um século no Brasil e no mundo, são um exemplo dos muitos que podem ser pinçados do dia a dia legislativo, quando nossos legisladores pensam em se ocupar de algo que lhes pareça mais sério do que nominar dias do Gráfico, da enfermeira, do tradutor, do intelectual, ao menos menos danosos à ordem jurídica instituída. A democracia não se veria atingida, e nem o princípio isonômico da igualdade perante a Lei, constitucionalmente assegurada, pela estipulação de condições para o ingresso na vida pública. O raciocínio é que se para o exercício de muitas profissões regulamentadas há exigências a serem cumpridas como, por exemplo, na medicina e, principalmente no Direito, na qual os bacharéis necessitam até mesmo serem submetidos do Exame de Ordem para verificação de sua qualificação profissional, não parece sequer razoável que se entregue a confecção das Leis a políticos que, em muitos casos, não tem qualquer preparo. No tempo de Bismarck, talvez houvesse razão para associar a elaboração das Leis à fabricação de salsichas. Nos dias de hoje, talvez fosse melhor relegar a fabricação de salsichas a quem não esteja preparado para elaborar Leis. Afinal, as salsichas, antes de irem a público, terão de ser aprovadas pela saúde pública, e pela vigilância sanitária, o que não acontece com as Leis." Envie sua Migalha