Artigo - Dano moral e contemporaneidade

13/11/2007
Mirna Cianci

"Peço vênia para discordar de parte do entendimento do ilustre Autor (Migalhas 1.777 – 9/11/07 – "Dano moral", Luiz Otavio Amaral – clique aqui). Não concordo com o caráter punitivo que se imprime ao dano moral. Conquanto esse critério venha sendo adotado na esfera jurisprudencial, tem sofrido sérias e fundadas críticas doutrinárias.

'HUMBERTO THEODORO JÚNIOR menciona a respeito que “há razão de ordem ética que, todavia, deve ser acolhida com adequação e moderação no campo da responsabilidade civil, que é geneticamente de direito privado, e não de direito público, como se dá com o direito penal. A este, e não ao direito privado, compete reprimir condutas que, na ordem geral, se tornam nocivas ao interesse coletivo. Urge, pois, respeitar-se a esfera de atuação de cada segmento do direito positivo, sob pena de sujeitar-se o indivíduo a sofrer sanções repetidas e cumuladas por uma única infração. Um dos princípios fundamentais da repressão pública aos delitos é justamente o que repele o bis in idem, isto é, a imposição de duas condenações em processo diferentes, pela mesma conduta ilícita".

Sob esse foco, com a devida vênia, resulta evidentemente ausente o sentido da sugestão de ANTONIO JEOVÁ DOS SANTOS, para evitar o argumento de ilícito enriquecimento da vítima, do ”sistema de que, da verba indenizatória, uma há, em separado, que servirá como caráter punitivo ao causador do prejuízo, ou seja, é fixado um valor que será entregue à vítima. Outra importância, mais alta, terá como título a indenização pelo mal inferido, como punição ao ofensor e, em rigor, não deverá ser entregue à vítima. Essa soma em dinheiro que é aditada ao montante normal da indenização que a vítima receberia, é o dano punitivo revestido de caráter sancionatório".

O mesmo Autor funda esse entendimento na lição de ZAVALA DE GONZALES e RODOLFO MARTIN que admitem que a vítima não deve lucrar com o evento lesivo, mas que de algum modo deve-se impedir o ofensor de reiterar a atividade nociva.

CLAYTON REIS, sob a lição de LESLIE TOMASELLO HART, menciona que "mais de um autor se opôs à indenização do dano moral (especialmente no terreno contratual) sustentando que essa reparação teria caráter de pena, porque haveria enriquecimento do credor e empobrecimento do devedor". Esse mesmo Autor destaca a obra de VON TUHR, segundo o qual ".... a satisfação a que aludimos não tem caráter de pena para o culpado ainda que se traduza em uma situação igual à multa, no caso de prejuízo ao patrimônio. Sua finalidade não é a de acarretar perda ao culpado, senão a de possibilitar um lucro ao lesionado".

BREBBIA a respeito afirma que "dentro do marco do nosso direito civil positivo não cabe acordar ao problema tratado outra solução, senão aquela que temos sustentado no campo doutrinário. Nenhum dos textos legais contidos no Código Civil autoriza a supor que a soma de dinheiro que o ofensor deve pagar ao danificado cumpre uma função de pena". O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo afastou a majoração do valor indenizatório porque "a indenização punitiva inexiste no direito positivo".

A mais importante lição decorre da opinião de AGUIAR DIAS ao mencionar que "na doutrina contemporânea, registra-se universal hostilidade à idéia de pena privada. STARCK, que escreveu notável monografia para opor-se à tendência geral, sustenta que isso se justificava no passado, quando dominava no instituto da responsabilidade civil o princípio da culpa. Hoje, o problema se apresenta de modo diverso. Cada vez mais as questões de reparação e garantia independem das noções de prevenção ou repressão". Menciona o Autor que STARCK, conquanto "advogando corajosamente a aceitação da pena privada", acaba por revelar as principais objeções que são impostas a essa tese: "(i) a pena privada repousa sobre a idéia bárbara de vingança; (ii) a pena privada é condenada por dupla evolução histórica: abolição constante das penas e objetivação da responsabilidade civil; (iii) a pena privada atenta contra a organização jurídica das democracias em que se insere a separação entre o direito civil e o direito penal; (iv) a pena privada, afastando-se do princípio da reparação integral, conduz ao enriquecimento ou empobrecimento da vítima". 

E também não se coaduna com esse caráter compensatório, a idéia de punição, pois que esta desborda do valor considerado suficiente à reparação, acrescendo-lhe um plus, àquele título, que soma-se à compensação, para resultar em ilícito enriquecimento. Não raro têm decidido os tribunais que a indenização por dano moral não pode ser instrumento de enriquecimento indevido, ao mesmo tempo em que, todavia, de modo incongruente ressalvam o caráter pedagógico a que alude a pena.

Ressalta à evidência que o acréscimo concede à vítima valor superior à compensação da dor moral, com o que não se sustenta a manutenção desse critério, senão em prejuízo da própria conceituação admitida pelos tribunais.

O E. I TACSP admitiu que "não há falar em caráter punitivo do dano moral como nota distintiva de outros danos pessoais", mas, de modo incongruente considerou que, ao lado da finalidade compensatória se teria o denominado "valor do desestímulo ou de inibição", o que nada mais representa do que a majoração do valor indenizatório como penalidade, já que esse critério refoge à simples compensação.

ARRUDA ALVIM, em palestra feita no IX Encontro dos Tribunais de Alçada alertou que "quanto à natureza do dano moral, alguns chegam a falar em pena, em castigo, e que, por isso mesmo, deve ser uma indenização alta, ou seja, exacerbada, de tal maneira que se contenha em seu bojo uma punição, com o fito de desestimular a prática de tais ilícitos. Tal linha de pensamento carregaria consigo uma "missão didática" com esquecimento, todavia, de que estaria albergando também enriquecimentos indevidos".

Em outros ordenamentos jurídicos, como o norte-americano, a indenização tem esse caráter, de modo que o valor fixado deva constituir em algo substancioso, a ponto de causar impacto na economia do ofensor. Todavia, os tribunais têm afastado esse caráter de pena, reduzindo-o tão-somente à reparação.

Razoável o entendimento que afasta o caráter punitivo da reparação moral não só porque o seu pressuposto não diz respeito direto ao dano experimentado pela vítima e afasta a aplicação do consagrado princípio do restitutio in integrum que domina o tema da reparação do dano, como porque, como critério objetivo, deixa sem solução hipóteses abrangidas pelo dever indenizatório, como a responsabilidade por fato de outrem (objetiva) e a decorrente do risco da atividade, ambas divorciadas da ilicitude e, portanto, do conceito de culpa.' (Trecho do livro O Valor da Reparação Moral, Saraiva 2005, Cianci, Mirna)."

Envie sua Migalha