Cartão Corporativo

19/2/2008
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"Minha primeira mulher, mãe de meus filhos mais velhos, infelizmente falecida muito jovem, tinha um primo militar, que era ajudante-de-ordem de um general que acabou por se tornar Presidente da República, o General Costa e Silva. Contava ele que o General Costa e Silva, já presidente, que o conservou ajudante-de-ordemaj mesmo na presidência, um dia reclamou que gostaria, lá pelas 16 h., todos os dias, de tomar um copo de leite, com uma fatia de pão com manteiga e uma fatia de queijo minas, um lanchinho para acalmar o estômago. Ele, é claro, passou a ordem para seu subordinado imediato, que a passou para o seguinte, iniciando a cadeia burocrática para atender o desejo presidencial. Disse-me ele que uns quinze dias depois o General reclamou que nada havia acontecido, o que fez com que ele passasse a reclamação para o funcionário imediatamente abaixo, dando início a uma cadeia burocrática de reclamações, quando chegou-lhe às mãos o 'processo', já com vistos de não sei quantos ministérios, com pareceres e carimbos, mas nada do tal lanchinho, fez com que ele, ajudante-de-ordem que era, prestimoso e atencioso, comprasse, de seu bolso, o leite, o pão, a manteiga e o queijo, e mandasse servir, todos os dias, às 16 h., o lanchinho do chefe. Não sei se isso é verdade. Passado tanto tempo, vendo a história pelo preço que comprei. Mas, pode ser verdade, já que o Presidente Sarney, em entrevista que li, afirmou que, em levantamento que fez em seus tempos de presidente, constatou que o percentual de suas ordens pessoais atendidas girava em torno de 8%. Ao que parece, foi para esse caso que se deu a criação dos cartões corporativos da presidência, inicialmente. Vai que o presidente, ou sua esposa, em viagem, ou andando por aí, sentem a necessidade de alguma coisa. Obviamente, não vão tirar dinheiro do bolso para comprar uma água, um suco ou uma tapioca que seja. Não vão pagar um almoço ou jantar, e nem terem de contar com a benemerência de algum assessor. E, estando em viagem, nacionais ou internacionais, alguém há de pagar os hotéis, ou alguma compra necessária, ou um corte de cabelo, ou uma manicure emergencial. São gastos de última hora, não previstos e, muitas vezes não previsíveis, que não puderam contar com o necessário empenho de verba e, muito menos, com aprovação prévia do Congresso Nacional, que quereria trocar com alguma outra coisa, por certo. Então, já no governo FHC, foram criados os cartões corporativos. Mas, as tais necessidades emergenciais, viu-se depois, não as tinham só presidente e sua esposa, mas também seus filhos, irmãos, seus pais, primos e tios, e seus assessores mais próximos e, até, os assessores mais distantes. Enfim, todo o primeiro escalão do governo. Era o tal princípio da isonomia, que vale para todos. Para todos? E onde ficavam os que trabalhavam nas estatais? E seus assessores, seus amigos e parentes? Afinal, se o partido havia ganho as eleições, para o que servia isso? Então ganhava-se mas não levava-se? E o Banco do Brasil passou a emitir cartões corporativos, para solucionar essas questões emergenciais, que são muitas as emergências, nesse país tão emergente. A isso assistíamos todos, mais de longe nós, o povo, sempre de longe, e mais de perto a oposição da época, hoje situação que, afinal chegou lá, ou aqui, ao governo, com seus amigos, parentes e assessores, com toda sua base de apoio. Daí, foi só cancelar os cartões anteriores e emitir os novos, para os novos usuários, para atender suas atuais emergências, até porque o país continua emergente, mais emergente do que nunca. Tem quem passa em frente de uma banca de tapioca e sente aquela fominha. Agora, não depois. É uma emergência. Usa-se o cartão. O assessor da filha do presidente nota uns pneuzinhos e se lembra que nos pneus está o perigo da dengue, e que  é preciso eliminá-los. Precisa uma esteira de ginástica. É uma emergência. Usa-se o cartão. O reitor da Unb, com tantos afazeres, não tem tempo para atender a patroa, que insiste para que ele faça supermercado. Pede a um assessor que faça suas compras, e aproveite para passar na delicatessen, na confeitaria e no Pão Italiano, e compre uns biscoitos, umas tortas e uns bolos finos. E use o cartão. Dizem que dois fatores assustam as mulheres, a gravidez e a gravidade, e a esposa do presidente, que não tem idade para o primeiro dos efeitos, sofre com o segundo, no rosto, coisa que o botox resolve, e como. O cartão está aí para isso. O partido do presidente está com notórias dificuldades de caixa. Nada melhor do que conceder aos seus tesoureiros alguns desses cartões para alguma emergência. E a coisa cresce, e aparece, como não poderia deixar de ser. Afinal, de emergência em emergência, são milhões de reais, muitos milhões, alguns milhões, e tudo ali, nos sites da transparência, deixando o público boquiaberto, assoberbado com suas próprias emergências não solucionadas. Algo precisa ser feito, e rápido. Primeiro, o que é mais rápido, e emergencial: tira-se do ar a informação. De momento, e em caráter de emergência, é o que é possível fazer. Mas, isso não é suficiente. Agora todo mundo já sabe. E, como todo mundo já sabe, a oposição, usuária anterior dos cartões, vislumbra a oportunidade de tirar vantagem política do fato, já que agora é o inimigo que está na berlinda. Que tal uma CPI? É uma boa idéia, principalmente porque eleições se avizinham e é sempre bom uma sujeirinha no colo dos outros. Primeiro o escândalo. Depois o acordo. Negociata, segundo o Barão de Itararé, é aquele bom negócio para o qual não fomos convidados. Mas que assistimos, boquiabertos e estarrecidos, como sempre, já que esse é nosso papel, eleitores que somos, nesse país emergente, tão cheio de emergências. O primeiro acordo é fechado: a divisão dos cargos na CPI, meio a meio, com leve vantagem pela situação. Segundo acordo: não vão ser investigados os usos emergenciais de cartões feitos em benefício dos presidentes, o atual e o anterior, de suas esposas e filhos, atuais e anteriores. Daí, é só esperar para a seqüência inevitável. A CPI vai ter muita discussão, muito jogo-de-cena, muito blá- blá- blá, e as isenções vão baixando de nível, do pessoal do primeiro escalão, cujas emergências vão ser todas, uma a uma, justificadas, aos do segundo escalão, cujos motivos para uso dos cartões – pelo amor de Deus – é plenamente aceitável, como o foi no governo anterior, até compras de supermercados do reitor da Unb, que senão a patroa reclama. Mas, algo tem de ser feito, o eleitor espera de seus representantes uma satisfação. As eleições vêm aí e uma ameaça paira no ar. Novas regras são estabelecidas: gente, vamos falar menos, vamos procurar ser mais discretos. De agora em diante, nenhuma informação será publicada, por questões de segurança nacional. E o cara da tapioca, o tal que comprou aqueles R$ 8,30 de tapioca com o cartão, deve ser imediatamente demitido. Certamente, tem razão o Presidente Lula, quando fica falando em 'herança maldita'. Mas que os cartões corporativos foram uma 'herança bendita' foram. Ah! Se foram."

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