Antigas histórias dos calouros

26/2/2008
Mauro Caramico

"Januário. Bigodes não ficam bem em ninguém, salvo no meu pai. Meu pai sem bigode não seria meu pai (Migalhas 1.844 - 25/2/08 - "Calouros" - clique aqui). Estava tão incorporado à sua fisionomia, que não era mais um bigode. Talvez se me perguntassem: 'Seu pai tem bigode?' Eu diria que não, e só depois de uns dois minutos daria um tapa na testa: 'Ah, não, tem sim'. Portava, antes da segunda operação (a primeira foi cardíaca, e ele saiu assobiando), uma barrigona redonda e dura. A única barriga atlética que já vi, e que encimava a minha melhor herança – coxas de nadador; pernas como ninguém, salvo eu, ele e o meu filho, as temos. Não consigo ir ao mar, sem me lembrar dele. Primeiro, eram as baleeiras, no Porto dos Práticos, em que embarcávamos ainda de madrugada, com dois barqueiros de livro – um que antevia cada virada do tempo só de olhar para o mar; outro sem dentes, o Bodega, a quem sempre dávamos tarallo, comprado na 14 de julho, para ver como se virava. Ele ria de sua própria boca quase inútil, adorando o gostinho das sementes de erva doce no biscoito duro. Pescávamos até que os dedos sangrassem com as linhadas e voltávamos exaustos do sol, do sal, do diesel da vagarosa baleeira, sentindo-nos heróis de uma saga marítima. Depois, já passado dos cinqüenta, e fumando dois maços de Albany, com carvão radioativado, carregava caixas de Bis, latas de leite condensado, sanduíches insossos, coca-colas, máscaras, nadadeiras, lastros de chumbo e snórqueis, e alugava barcos para irmos mergulhar. Sempre passava mal e sempre era o mais ponderado dos mergulhadores, sempre tinha alguma coisa a dizer, sempre fazia alguma piada. Sempre era olhado pelos outros, por todos os outros, com olhos infantis. Era o salva-vidas. Uma vez eu, pequeno e medroso, não quis mergulhar. Fiquei no barco, entre duas ilhas em Ubatuba, observando os snórqueis se afastarem e tentando compreender os peixes-voadores em volta do casco. Percebi que o barco não estava bem apoitado , as marolas o carregavam, chegava perto das rochas. Meti a mão na buzina e um dos mergulhadores, que estava mais próximo, veio e salvou o barco. Para o meu pai, a história era outra – para ele, mesmo eu dizendo que só tinha buzinado, eu é que tinha ligado o barco e evitado o naufrágio. Amava os três filhos com idêntica intensidade, um pela bondade, outro pela inteligência, outra pela coragem. Protegia-nos como um pai judeu: na minha primeira noite de aula, passou horas em um banco do Largo São Francisco, olhando-me de longe, para ver se eu não sofreria no trote. Voltou para casa incógnito e orgulhoso, e eu só soube que estava lá por uma inconfidência maternal. Era italiano, desses que dão um tapa na mesa, empurram a cadeira com um estrondo e largam o prato no meio, quando os filhos passam dos limites. Vê-lo largar a refeição no meio virou, para mim, a maior punição possível. Quando brigávamos, ficávamos dois ou três dias trocando grunhidos. E minha teimosia sempre vencia a dele, que cedia-e-não-cedia, fazendo alguma troça que me fizesse rir contra a minha vontade. Foi embora neste fatídico ano de 2007; eu me segurava em sua mão. E pediu desculpas, vejam vocês, desculpas! Sabia, graças a Deus, o a falta que o seu mar nos faria. O bigode, branco e ralo, estava bem aparado em seu rosto emagrecido. E já não era mais ele."

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