Artigos - Cotas ou discriminação

4/3/2008
Samuel Barbosa dos Santos

"Senhores Migalheiros, Um dos grandes equívocos cometidos pelos (ferrenhos) opositores do, sempre hostilizado, sistema de cotas é o fundamento da capacidade (Migalhas 1.849 -3/3/08 - "Cotas", Antonio Pessoa Cardoso - clique aqui). Esquivam-se da análise do que é, deveras, importante: a hipocrisia da sociedade brasileira inadmite - de forma velada - o progresso do povo negro. É muito simples para um caucasiano atacar o sistema de cotas: ele nunca foi vítima do racismo. Pertence àquela parcela social que nada tem contra os negros, desde que eles não sentem à mesa. As cotas existem para reparar a discriminação a que foi submetida o povo negro. A educação, igualando os baixos estratos sociais, somente fará que os brancos pobres ascendam socialmente, remetendo os negros para onde nunca deveriam ter saído. Somente alguém que é negro (por acaso sou advogado negro), que suportou todos os obstáculos raciais, que - para ser respeitado - deve sofrer muito mais que o colega branco, pode opinar - com conhecimento de causa - sobre os regime de cotas. Das minorias nestes país, aos negros e aos índios não se permite ascensão social. Olhe-se o TJ/BA (clique aqui), Estado no qual se tem, pelo menos, 50% (cinqüenta por cento) da população negra: um desembargador negro e quatro pardos. Nos tribunais americanos, país em que os negros são em muito menor número, se vêem mais negros do que aqui. Lá, os dois últimos secretários de estado (num governo conservador) são negros. Os nacionais poderiam (aí incluído o da Bahia), muito bem,se situarem na Dinamarca, Suécia... Observe-se que já existem outros tipos de discriminação positiva, mormente no campo eleitoral: 30% dos candidatos devem ser mulheres. Algumas vezes, depois de defesas muito bem feitas, ouço meus clientes dizerem que o advogado que os defendeu é um ‘moreninho’, em uma evidente economia de melanina. Quando casei, alguns familiares de minha mulher (branca) se revoltaram contra a minha sogra, porquanto assentia que sua filha se casasse com um negro. O Brasil trata muito mal os seus negros. A miscigenação racial, como fundamento para se hostilizar o regime de cotas, é falacioso. Discrimina-se a cor da pele. E ponto. Visite-se as prisões. Vejam qual é a raça ali mais representada. Saia-se de lá e se dirija ao aeroporto. Procure algum negro. Não raro, em minhas viagens a trabalho, sou o único negro no avião. Quando me graduei, na minha faculdade existiam dez ou doze alunos negros em um universo de mais de quatro mil bacharelandos. Existe algo pior do que ser um homem negro no Brasil: ser mulher negra... No Judiciário, os meliantes caucasianos alcançam, na maioria das vezes, a liberdade provisória; os negros, muito raramente. Até mesmo quando são sócios no crime. Já sustentei em mais de cem tribunais do júri. São raros os jurados negros. E, quando existem, enxergam-se 'moreninhos'. Alcancei absolvição de elementos brancos, alguns não mereciam. Muitos negros foram condenados, sem qualquer prova, por júris totalmente brancos. Alguns, seguramente, inocentes. Já fui conduzido à delegacia, somente porque, no dia, cometi o 'crime' de sair à rua com uma camisa de seda estampada e com uma calça jeans rasgada no joelho. O Excelentíssimo Senhor desembargador articulista (que é branco) desconhece, por certo, a realidade do país e do estado no qual reside. Caso contrário não escreveria da forma em que colocou. Lembro-me que, no ano de 2000, ao assistir uma palestra proferida pelo Excelentíssimo Senhor Senador Cristovan Buarque, consegui, por fim, enxergar os motivos pelos quais no Brasil não se consegue a Justiça Racial. É que, nesse país, historicamente, não se consegue realizar qualquer obra por inteiro: o descobrimento foi pela metade (todos sabiam da existência da terra); a independência foi pela metade (proclamada pelo príncipe herdeiro da metrópole) e a abolição da escravatura, por óbvio, não podia ser diferente. O negro continua ser hostilizado. Nega-se a ele a igualdade material que, inclusive, se deferiu às mulheres e aos homossexuais. Força-se um embranquecimento moral (o negro se vê como moreninho). E, desta forma, nunca vamos alcançar a condição verdadeira de nação justa, igualitária e que acomode todos os seus cidadão."

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