Células-tronco 17/3/2008 Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668 "Migalheiro Dávio: primeiramente, é de se notar que você mesmo invoca posicionamentos de cientistas para tentar se embasar – essa é realmente a única postura válida em um Estado verdadeiramente laico. É nesse ponto que deve se ater, não a subjetivismos religiosos. No mais, é absurdo dizer que o art. 19, inc. I da CF/88 não teria a mesma legitimidade dos demais dispositivos constitucionais por supostamente não ter sido aprovado pela maioria da população. Ora, a elaboração de uma nova Constituição se faz por intermédio de uma Assembléia Nacional Constituinte, na qual os representantes do povo elaboram todos os dispositivos constitucionais originários. O fato dos elaboradores da Constituição de 1988 terem sido eleitos pelo povo faz com que todos os seus dispositivos tenham a mesma legitimidade, o que independe de eventual hierarquia abstrata entre eles (o mesmo valendo para nosso ‘Congresso Constituinte’, pois a população sabia que este Congresso elaboraria a nova Carta quando votou em seus membros). Ou seja, o art. 19, inc. I da CF/88 foi votado e aprovado pela Assembléia Nacional Constituinte (‘Congresso-Constituinte’) que elaborou a Constituição Federal de 1988, sendo assim um texto normativo dotado de total legitimidade democrática. Em segundo lugar, fundamentações religiosas não podem embasar decisões jurídicas e políticas porque pautadas em verdadeiros subjetivismos, alegações desprovidas de comprovação humanista que lhes justifique. A ilação feita por você não tem o condão de afastar isso – primeiro porque reconhece que a fé não supõe comprovação, do que só se pode concluir (ao contrário de você) que ela não pode ser imposta a outros, como será caso paute decisões políticas ou jurídicas. Por outro lado, o filme por você invocado como exemplo também não socorre sua posição. Apenas para esclarecer quem não o assistiu, o contexto foi o de decidir quem viajaria ao espaço para conhecer uma raça alienígena de tecnologia superior à humana – foi nesse contexto que o ministro religioso citado pelo migalheiro Dávio solicitou à cientista atéia que provasse o amor que sentia pelo seu falecido pai, o que a deixou muda e, pelo contexto do filme, foi decisivo para que não se a escolhesse, naquele momento, a realizar dita viagem (porque a maioria da população, teísta, preferiria um teísta a lhes representar, segundo dito ministro religioso...). Contudo, merece crítica o filme pelo fato de que o amor é sim comprovável – bastaria que testemunhas atestassem as relações de afeto existentes entre pai e filha, exteriorizadoras do sentimento de amor de um pela outra (e vice-versa), ou, na inexistência destas, bastaria alegar que seria possível a prova do amor mediante testemunhas que tivessem convivido com ditas pessoas – ainda que se confessasse não ter, no caso concreto, testemunhas para tanto (ou seja, abstratamente é possível a prova da exteriorização do amor, ainda que concretamente, pelas circunstâncias, não o seja). Em terceiro lugar, a questão da colocação de crucifixos em repartições públicas em geral, em síntese, é inconstitucional por caracterizar verdadeira relação de aliança com a fé cristã e/ou, ainda, por causar descabido incômodo àqueles que não professam a fé cristão que ingressem em ditas repartições públicas. Decisões do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha já o disseram (cf. BverfGE 35, 366[375] e BVERFGE 93,1 – KRUZIFIX – 1BvR 1087/91). Mas, o mais importante a ser aqui enfocado é a colocação do migalheiro Dávio no sentido de que Deus seria o primeiro Juiz, por excelência, das relações humanas e existir independentemente de crermos nele ou não, donde a ofensa à alma humana supostamente existente já na fecundação também existiria quer se creia nela ou não. Como fica evidente, o migalheiro Dávio tenta impor, por essa colocação genérica (de Deus como o primeiro Juiz), uma certa concepção cristã (de vedação de pesquisa com embriões – que nem é compartilhada por todos os cristãos, vale ressaltar) a toda à sociedade, impondo que a aceite mesmo sem nenhuma prova empírico-científicas disso (a análise é deste argumento específico, não da tese científica que tenta defender a existência da vida desde a concepção). Ao fazê-lo, afronta o próprio direito à liberdade religiosa, que, na lição de Canotilho e Vital Moreira, garante o direito ‘de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou anti-religiosa’ (cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição Portuguesa Anotada, 1a Edição Brasileira, 4a Edição Portuguesa, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais e Coimbra: Editora Coimbra, 2007, p. 609.) – ou seja, veda peremptoriamente que se prejudique e/ou influencie uma pessoa com base na fé alheia – e os portadores de doenças atualmente incuráveis são efetivamente prejudicados por uma decisão que vede as pesquisas com células tronco-embrionárias, que têm um potencial muito maior do que as células tronco-adultas – pois, afinal, se estas tivessem a mesma potencialidade daquelas, não haveria sequer interesse em se litigar para se obter o direito de se utilizar aquelas na pesquisa. Em suma, pelo subjetivismo inerente às religiões e à fé em geral, fundamentações religiosas não podem ser usadas para fundamentar decisões políticas ou jurídicas. A Constituição se aplica a todos, mesmo às maiorias, cabe sempre lembrar – e a Constituição consagrou a laicidade estatal, por força de seu art. 19, inc. I." Envie sua Migalha