União estável homossexual

7/4/2008
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668

"Sr. Diretor: gostaria de aplaudir o voto do Ministro Massafumi Uyeda no julgamento do REsp 820.475 (Migalhas 1.872 - 4/4/08 - "União estável homossexual" - clique aqui) no qual ele reconheceu a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, ocasionando empate de 2x2. Não apenas pelo reconhecimento (que evidentemente merece aplausos), mas pela superação da inacreditável pseudo - tese segundo a qual o fato da lei e da Constituição usarem a expressão 'o homem e a mulher' impossibilitaria a união estável homoafetiva. Ora, essa expressão não cria uma 'proibição implícita' porque proibições implícitas inexistem em Direito – ou há uma proibição expressa ou então inexiste proibição, pois ninguém será obrigado a deixar de fazer algo senão em virtude de lei (art. 5º, inc. II da CF/88). Inexistindo proibição, há uma lacuna e, como é notório, lacunas suprem-se pela interpretação extensiva ou pela analogia. Sinceramente, quem fala que a redação atual da lei e da Constituição proibiriam a união estável homoafetiva apenas por força da expressão 'o homem e a mulher' parece que teve aula com Kelsen (positivismo legalista) e faltou à aula sobre analogia... Com isso quero dizer o seguinte: quem é contra a união estável homoafetiva tem que dizer porque não caberia o uso da interpretação extensiva ou da analogia (explicando, portanto, porque as situações seriam distintas e, ainda mais, distintas no elemento essencial protegido pelo Direito de Família) para que sua tese seja minimamente defensável. Dizer que não haveria uma lacuna no que tange à união estável homoafetiva pela expressão 'o homem e a mulher' acaba por simplesmente negar vigência ao instituto da analogia, pois esta se pauta justamente na existência de um fato regulamentado (como a união estável 'entre o homem e a mulher') e de um fato não-regulamentado (a união estável 'entre duas pessoas do mesmo sexo'), para se defender que este último é análogo (idêntico no essencial) àquele. Idem em relação à interpretação extensiva, que, na lição de Miguel Reale, supõe que se interprete o texto normativo além do que usualmente se faz (Lições Preliminares de Direito, 27ª Edição, 2004, p. 298). Quanto ao mérito da decisão, ela é correta na medida em que a família contemporânea é pautada pelo amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, amor este que existe tanto nas uniões homoafetivas quanto nas heteroafetivas, razão pela qual é cabível a utilização da interpretação extensiva ou da analogia para estender o regime jurídico da união estável aos casais homoafetivos. Capacidade procriativa é irrelevante na medida em que a casais heteroafetivos estéreis (que não a possuem) é reconhecido o direito à união estável e ao casamento civil, sendo assim um contra-senso usar este argumento para vedar a união estável homoafetiva (assim como o casamento civil homoafetivo). Isso não implica em menosprezar casais férteis, mas reconhecer a igual dignidade dos casais que não possuem capacidade procriativa. Isso não implica em menosprezo a concepções cristãs nem quaisquer outras concepções religiosas, apenas no reconhecimento de igual dignidade de outras formas de família e reconhecimento que não se podem impor concepções religiosas a quem com elas não concorda. Por fim, pelo que foi divulgado dos dois votos contrários (que eu saiba, há apenas notícias sobre eles mas a íntegra dos contrários e dos favoráveis ainda não foram disponibilizados), eles se pautam tanto na tese aqui já criticada (redação da Constituição e, portanto, da lei). Há, ainda, que se afastar a equivocada premissa de que ao STJ não caberia interpretar a Constituição, o que seria cabível apenas ao STF (não sei se isso consta dos votos contrários). Embora haja uma linha doutrinária nesse sentido, ela me parece incorreta. Ora, é inerente ao controle difuso de constitucionalidade existente em nosso país (ainda que concomitantemente ao concentrado) que todo e qualquer tribunal interprete a Constituição, donde também o STJ. O fato deste ser o intérprete final apenas da legislação federal não é incompatível com isto, na medida em que a legislação federal deve ser interpretada em conformidade com a Constituição. Nega vigência à noção de supremacia constitucional a interpretação da lei em contrariedade à Constituição, donde o STJ tem que interpretar esta para corretamente interpretar a legislação infraconstitucional. Mesmo porque ele diversas vezes interpreta a Constituição (uma pesquisa com os termos 'dignidade humana', 'isonomia' no site do STJ deixa isso claro)."

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