Migalheiros

10/4/2008
Nelson Castelo Branco Eulálio Filho - mestre em filosofia pela Universidade Federal do Ceará – UFC

"Desde as suas origens em fins do século VII a .C. e início do século VI a .C., a preocupação dos filósofos tem sido o fato de que, segundo eles, a maioria dos homens não reflete sobre o que a eles se apresenta; vive na aparência das coisas; vive na inconsciência. E é justamente na consciência que o filósofo tem de que a maioria vive na inconsciência que reside a solidão e o sofrimento do filósofo - já dizia o saudoso professor Roland Corbisier. Foi com Sócrates, (mestre de Platão) que tal fato tornou-se emblemático, paradigmático. O oráculo proclamou-o, pela boca da pitonisa, como 'o mais sábio dos homens' e incitou-o a procurar saber em que consistia sua sabedoria. Sócrates andava pelas ruas de Atenas perguntando a um e a outro o que são as coisas – basicamente as coisas que dizem respeito aos homens. Ao juiz perguntava o que é a Justiça; ao general, o que é a coragem, etc. Utilizava um método chamado maiêutica que consistia em uma série de perguntas (na seqüência das respostas do interlocutor) que acabava por fazer com que o próprio argüido chegasse à conclusão, pelas suas próprias respostas, que não sabia o que julgava saber; por isso mesmo e ao mesmo tempo, 'arrancava' de dentro de si o conhecimento. Isso, depois, vai ficar conhecido no conjunto da doutrina platônica como a 'teoria da reminiscência' que significa que ‘conhecer é recordar’ (aquilo que a alma já sabia desde sempre e que estava apenas esquecido). O método de Sócrates faz exatamente isso, ou seja, trazer à lembrança esse conhecimento esquecido. A propósito, Sócrates costumava dizer que sua mãe (que era parteira) 'dava à luz crianças'. 'Eu – dizia o filósofo – dou à luz idéias'. Malgrado suas melhores intenções, com essa prática aliada a sua contumaz 'ironia' (que, na verdade, era um outro momento do seu método), acabou por angariar muitos inimigos poderosos o que veio a culminar, mais tarde, com sua morte decretada por um tribunal de Atenas - mas isso já é uma outra história. Sócrates perguntava o que são as coisas por que não sabia e queria saber. Mas - detalhe importante - sabia que não sabia. Os demais, apesar de também não saber, ignoravam que não sabiam; e aqui está o centro da questão: eles não sabiam e não sabiam que não sabiam. Sofriam, portanto, de uma dupla ignorância: ignoravam e ignoravam que ignoravam. Eram inscientes da própria insciência. Presos na ignorância da própria ignorância (ignorando que ignoravam) estavam fechados para o conhecimento. Sócrates, ao contrário, não sabia; mas sabia que não sabia; tinha ciência da sua insciência; tinha consciência de sua ignorância. 'Não sei e sei que não sei' - reside aí a sabedoria socrática anunciada pela pitonisa. O filósofo não sabe e sabe que não sabe; e por saber que não sabe está aberto para saber. Na consciência da ignorância reside a sabedoria do filósofo - O famoso 'só sei que nada sei' de Sócrates resume exatamente tudo isso. De outro lado, o não-filósofo, isto é, o comum dos homens, não sabe e não sabe que não sabe; e por não saber que não sabe está fechado para o conhecimento. Na inconsciência da ignorância reside a dupla ignorância do homem comum: ignora e ignora que ignora ou, dito de outra forma, não sabe e não sabe que não sabe. Platão priorizava o que ele chamava de 'oralidade dialética' (o diálogo vivo) em detrimento da 'escritura' (o texto escrito) pois segundo ele – o que é verdade – o texto 'não pode se defender'. Via de regra, quem o lê, o faz nos limites de sua própria consciência, no seu próprio horizonte de entendimento, e não segundo a consciência e horizonte de entendimento de quem escreveu. Apesar dessa crítica à 'escritura' Platão nos legou uma vasta obra escrita (que, aliás, chegou até nós na íntegra) na qual se destaca aquela que alguns vêem como sua obra prima: A República. Logo no início do Livro VII dessa obra, no famosíssimo 'Mito da Caverna', Platão vai retomar esse tema, a saber, o fato de que o comum dos homens só vê a aparência e superficialidade da realidade. Aristóteles (discípulo de Platão) retoma toda essa tradição na sua obra mais famosa, a Metafísica. No livro I dessa obra, já na primeira frase ele afirma: 'todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer' e, logo adiante, acrescenta: 'foi com certeza a surpresa [o espanto] que levou, como ainda hoje continua a levar, os primeiros pensadores às especulações filosóficas. (aqui ele está se referindo aos primeiros filósofos, surgidos no final do século VII  a. C. e inícios do século VI a. C. e aqueles surgidos ao longo dos  séculos V e IV a . C. – isto é, ele está se referindo a todos os filósofos antes dele). 'A princípio - continua Aristóteles – foram as dificuldades mais aparentes que os impressionaram; depois, avançando assim pouco a pouco, procuraram resolver problemas mais importantes, tais como os fenômenos da lua, do sol e das estrelas, enfim, a gênese do universo. Perceber uma dificuldade e surpreender-se – continua o filósofo – é reconhecer a própria ignorância (...) foi assim, portanto, para escapar a própria ignorância que os primeiros filósofos se entregaram à filosofia.' Fica claro nesse texto de Aristóteles ecos socráticos, isto é, da tese segundo a qual o primeiro pressuposto da ciência é a consciência ou o reconhecimento da própria ignorância pois somente aquele que sabe que não sabe pode desejar saber."

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