Migalheiros

17/4/2008
José Cícero da Silva - pesquisador, poeta e escritor – Aurora/CE

"Mártir Francisca: um auto-de-fé, oblação e graças

Se alguém ainda tem dúvida acerca da antiga afirmação que diz que 'a fé move montanhas', diríamos que aqui na cidade de Aurora na região do Cariri no alto Salgado esta assertiva há muito vem ganhando ares de verdade ao ponto de multidões inteiras jurarem ter alcançado inúmeras graças, curas e milagres. Tudo isso em nome de uma fé visivelmente inabalável que a cada dia mais cresce, se fortalece e vai se transformando em algo quase axiomático no aspecto do inconsciente coletivo da população. E não diga que este fenômeno está restrito apenas a comuna d'Aurora. Posto que está dimensionado muito além dos limites fronteiriços que compõem e delimitam o imenso território aurorense. A fé, por isso mesmo, não está apenas movendo montanhas neste caso em particular, dado que também tem conseguido projetar um longo histórico de casos supostamente milagrosos, tanto aqui quanto alhures. De maneira discreta e silenciosa a figura como de resto o martírio de uma pobre jovem aurorense vem se popularizando por toda região, sobretudo pelas notícias cada vez mais freqüentes das graças alcançadas pela intercessão do seu nome. E diga-se também de passagem, que os acontecimentos relacionados ao fenômeno da mártir não é de agora. Ele é remissivo aos idos de 1958 quando a jovem Francisca Augusta da Silva então com apenas 16 anos foi barbaramente assassinada com 11 golpes de faca peixeira na localidade do sítio padre Mororó-Várzea de Conta na periferia da cidade. No exato local onde a jovem Francisca foi martirizada agora existe uma capela que recebera o apelido de 'capelinha da moça' ladeada por um solitário pé de Pereiro, uma resistente árvore nativa da caatinga sertaneja. Segundo dizem, o vegetal inclusive, servira de abrigo, fazendo sombra para Francisca nos seus últimos suspiros. De modo que na crença do povo também passou a conter propriedades milagrosas. O chá, tanto quanto a efusão de suas folhas e cascas conseguem curar uma série de doenças. Outros recolhem suas folhas simplesmente para mantê-las em casa junto aos santos como um amuleto de proteção contra os maus espíritos e mau olhado. Ou ainda, como mero souvenir de lembrança de Francisca. Na época do infausto acontecimento tal planta era apenas uma moita. Hoje, a vetusta árvore vem despertando a admiração e a curiosidade por parte dos devotos e fiéis de mártir Francisca que no decurso de meio século vem sendo considerada por muitos, como a autêntica 'santa popular' de Aurora. Devido o rápido crescimento da devoção popular, através de esmolas e contribuições dos fiéis foi erguida uma nova capela com dimensões maiores, dedicada a Nossa Senhora dos Milagres por ter esta, o semblante muito parecido com o de Francisca. Porém, a capelinha original ainda mantém-se de pé, integralmente preservada. Abrigando no seu interior, além da estátua da mártir, quadros de diversos santos, um incontável número de fotografias e ex-votos (peças de madeiras) deixados ali pelas pessoas que já alcançaram algum tipo de curas, graças e milagres. No centro da capelinha um cruzeiro centraliza chão dividindo o pequeno espaço com os visitantes. Um marco deixado pela Ordem Santa Cruz dos Penitentes – grupo primitivista de oração, que segundo informações, foram os criadores da capelinha em meados dos anos cinqüenta logo após o assassinato da jovem. Até mesmo para os céticos, o local tem o poder de transmitir uma sensação de paz e refrigério interior. 'É uma verdadeira calmaria para nossa alma' explica o professor Luiz Domingos, profundo devoto e colaborador de mártir Francisca. Recentemente a colônia de devotos da mártir residente em Fortaleza doou, por intermédio do professor e pesquisador da Universidade Federal do Ceará (UFC) Gilmar de Carvalho, uma nova imagem. Trata-se de uma estátua em madeira-de-lei medindo 70 cm. Fanatismo religioso simplesmente? Digamos que não. Pois o véu que cobre o sagrado é extenso e indecifrável. Sua verdadeira compreensão ainda se encontra muito além do entendimento dos homens. O mundo visível e concreto é tão somente um complemento, uma extensão do invisível do supra-físico; para o qual nenhum dos mortais está devidamente preparado para, sequer, a aceitação normal do seu mistério. Tudo aquilo que ajuda a elevar o espírito de bondade dos seres humanos precisa ser preservado. Notadamente quando contribui para mitigar o sofrimento, o enfado da vida moderna e as agruras da miséria humana. E como o tempo é o senhor de tudo, deixemos que ele se encarregue de mostrar-nos algum dia, de que lado a verdade dos fatos estará posicionada. Em resumo, diremos desde já, que a figura de mártir Francisca assim como a importância da sua devoção contribuem para o engrandecimento, cristão e espiritual de todo o povo aurorense e quiçá da região. Por isso haveremos de no mínimo, respeitar a opção daqueles que possuem o verdadeiro dom de enxergar nas coisas do espírito tudo aquilo que os materialista não as vêem por uma existência inteira. Mártir Francisca representa um legado de bondade, um lenitivo de paz que a história recente de Aurora deixou para nós os contemporâneos, bem como para a geração do porvir. Uma história como tantas outras, escrita com letras de sangue sob a pena da barbárie e a insígnia do sofrimento na sua versão mais triste e perversa.. O desrespeito sistemático a este singular auto-de-fé, bem como a individualidade dos que crêem no sagrado, também constitui uma forma de fanatismo das mais injustificáveis e deprimente. De tal sorte, digamos ainda: Viva mártir Francisca – a santa popular de Aurora. Por que Deus sempre se manterá do lado povo."

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