Artigo - Homem grávido de uma menina

15/5/2008
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668

"Respondendo às questões trazidas por Luiz Flávio Gomes, primeiro uma premissa e depois as respostas (Migalhas 1.896 - 13/5/08 - "Homem grávido" - clique aqui). A premissa: a partir do momento em que se permite a cirurgia de 'mudança de sexo' e, principalmente, a alteração do sexo jurídico da pessoa (como a jurisprudência tem admitido), então deve-se conceder à pessoa que se submeteu à cirurgia o tratamento jurídico dispensado ao seu 'novo sexo', por assim dizer. Isso é evidente. Entendimento em sentido contrário implicará em afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana (que é, aliás, o fundamento jurídico para o deferimento tanto da cirurgia quanto da retificação do sexo jurídico). Agora, as respostas, relativas evidentemente ao caso de Thomas Beatie (ou seja, de um 'transexual masculino' – uma mulher que fez a cirurgia e agora é, para todos os efeitos, um homem), pela ordem trazida no artigo de Luiz Flávio Gomes:

(i) não, um transexual que fez a cirurgia para se tornar um homem não pode ser vítima de estupro porque, no lugar da vagina biológica, existe um pênis artificial. Não sou profundo conhecedor do resultado da cirurgia, mas, salvo engano, no caso da mulher que deseja se tornar um homem, esta (cirurgia) visa extirpar a vagina e colocar um pênis artificial em seu lugar. Logo, não haveria a 'cópula vagínica' necessária ao estupro;

(ii) sim, um transexual masculino grávido pode cometer infanticídio caso se constate a existência do estado puerperal (que refere-se a uma questão hormonal específica da gravidez), lembrando que o art. 123 do CP fala em 'Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após', não demandando, portanto, uma mulher biológica, donde, na hipótese de um homem grávido (que o excepcionalíssimo caso de Thomas Beatie acabou, surpreendentemente, provando ser possível) matar o próprio filho sob a influência do estado puerperal, incorrerá no delito de infanticídio e não no de homicídio (pois, se a pessoa está grávida, evidentemente realizará o parto citado no dispositivo);

(iii) o art. 123 do CP (clique aqui) não fala em 'mãe', mas traz a redação transcrita na resposta anterior, logo sequer se trataria de interpretação analógica, mas de efetiva conduta tipificada;

(iv) 'Gestante' um 'homem grávido' inequivocamente é, na medida em que 'gestante' é a qualidade de quem está em estado de gravidez, contudo, a redação do tipo constante do art. 124 do CP torna a questão da tipificação do aborto em um homem transexual aparentemente inviável, na medida em que fala em 'Provocar aborto em si mesma...', ou seja, em pessoa do sexo feminino... Aqui a polêmica provavelmente se instauraria, na medida em que muitos defenderão (como o migalheiro Fabiano Rabaneda) que, biologicamente, o homem transexual continuaria sendo uma mulher, em que pese sua cirurgia, donde, se o transexual masculino grávido interromper sua gravidez, incorreria no delito de aborto (por esta interpretação), ao passo que outros podem vir a defender que, com a cirurgia, será juridicamente um homem e, portanto, um 'homem grávido', não uma 'mulher grávida', donde não haveria enquadramento na tipificação penal – a menos que se permitisse o uso da chamada 'interpretação analógica', o que não me parece ser o caso (se não se admite dita interpretação analógica para estender a proteção da Lei Maria da Penha aos homens ante a legalidade estrita criminal, o mesmo fundamento o faria aqui... Por mais que haja identidade no essencial, a analogia não é admitida no âmbito penal, como é notório;

(v) considerando que a alínea 'h' do art. 61 do CP fala que será circunstância agravante cometer o crime 'contra mulher grávida', então, novamente pela questão da legalidade estrita criminal, não me parece ser possível dita agravante no presente caso, pois aqui temos um 'homem grávido' e não uma 'mulher grávida'. Será um caso análogo ao da Lei Maria da Penha no que tange ao homem: este também pode ser vítima de violência doméstica (como um 'homem grávido' é alvo de violência na mesma medida que uma 'mulher grávida'), mas a letra da lei prevê a especial proteção da Lei Maria da Penha apenas à mulher alvo de violência doméstica (o que é constitucional ante o aspecto material da isonomia). Ou seja, como o art. 61, alínea 'h' fala em 'mulher grávida' e não em 'homem grávido', ao que parece a agravante aqui não se aplicaria ante a legalidade estrita criminal (pois, novamente, não me parece cabível a 'interpretação analógica' do Direito Penal);

(vi) embora aqui possa existir a mesma polêmica supra descrita por haver quem entenda que o sexo biológico é o que deveria identificar a pessoa independentemente da cirurgia de 'mudança de sexo', penso que não – um homem transexual não poderia receber a proteção da Lei Maria da Penha porque esta se destina a 'mulheres', e uma mulher que faz a cirurgia para se tornar um homem não é mais, juridicamente, uma mulher. Lembre-se, aqui, que o transexual toma hormônios ao longo do tempo, justamente para adquirir as características do sexo que pretende alcançar pela cirurgia. Salvo engano, a testosterona 'ingerida' pelo homem transexual certamente lhe confere a resistência/força inerente ao sexo masculino (ainda que não a mesma de um homem biológico). De qualquer forma, feita a cirurgia, a pessoa deixa, juridicamente, de ser considerada como de seu sexo biológico originário para ser considerada como do sexo biológico oposto (o qual obteve por força da cirurgia), sob pena de afronta à sua dignidade humana. Assim, inaplicável a Lei Maria da Penha a um homem transexual (mulher que fez a cirurgia para se tornar homem);

(vii) o art. 134 do CP fala apenas em 'Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria', donde aplicável também a 'homens grávidos' – embora a 'occasio legis' ensejadora deste dispositivo tenha sido o caso de mulheres que mantiveram relações sexuais fora do casamento (na época em que a mulher era, absurdamente, quase que uma coisa – 'res' – de propriedade do homem e era menosprezada socialmente se não fosse virgem na época do casamento) e que consideravam uma desonra sua gravidez extra-matrimonial, aqueles que estudam a arte de interpretar sabem que é o texto objetivo, efetivamente escrito, que é o objeto de interpretação, não a vontade subjetiva do legislador concreto ('mens legislatoris'), donde perfeitamente possível esta mutação normativa para permitir dita tipificação (do crime de abandono por um 'homem grávido')."

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