Células-tronco

5/6/2008
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668

"Caro Dávio, não é que eu não entenda sua posição: entendo-a, mas com ela não concordo (como você em relação à minha). Continuemos o debate: (i) a sociedade – a maioria se submete à Constituição migalheiro Dávio. A Constituição não proíbe as pessoas de pautarem suas vidas por sua fé, ela apenas determina que questões religiosas não poderão ser usadas para determinar a vida em sociedade e, portanto, o Direito, justamente porque religião e fé são questões subjetivas de cada pessoa, que varia de pessoa a pessoa. De qualquer forma, o Direito é instrumento de transformação social; a força normativa do Direito se impõe sobre a sociedade, que deve respeitá-la. Essa é a lógica do Estado de Direito; se não gosta dela, deverá se conformar ou se mudar a um Estado que não seja de Direito; (i.1) os defensores da validade de argumentos puramente religiosos no Direito são, felizmente, minoritários. Felizmente, a maioria pensa como Celso de Mello no sentido de que pré-compreensões religiosas não podem ser usadas como paradigmas jurídicos, ante sua arbitrariedade, no sentido de não - comprováveis e variáveis conforme o pensamento de cada pessoa. Você fala da posição cômoda de católico, suposta maioria da população (suposta porque a maioria dos que se dizem católicos não segue os preceitos de sua amada igreja); quer dizer então que, se amanhã a maioria for muçulmana, você defenderá a validade do Corão?! Isso não me parece lógico: como a humanidade não chega à conclusão sobre qual seria uma religião 'correta', então nenhuma poderá ser imposta sobre os outros (ii) não questionei que a fé, a crença arbitrária em algo, não possa ser comprovada (talvez tenha me expressado mal), nem que ela não possa trazer benefícios às pessoas. Mas os dogmas de fé, as questões tidas como apriorística e universalmente corretas e inquestionáveis, estes não são comprováveis. (iii) bem Dávio, você não aceita a veracidade do inconsciente coletivo, que é uma teoria muito bem fundamentada e comprovada empiricamente; eu não aceito que dogmas possam ser impostos sobre terceiros que com eles não concordem. (iv) Dávio, por favor: ainda que sua paixão incondicional por sua igreja seja notória, não distorça minhas palavras – eu não disse em nenhum momento que a igreja 'manipula' a ciência, eu disse que a igreja apenas ratifica a ciência quando esta não contraria seus dogmas de fé; ou seja, que a igreja apenas usa argumentos científicos quando estes coincidem com seus dogmas – quando não há tal coincidência, sua igreja se pauta por seus dogmas e ignora a ciência. Há uma enorme diferença – pois, quando há coincidência, a igreja pode acabar fazendo desenvolvendo várias descobertas, como qualquer cientista. Engraçado minhas críticas serem vistas como 'metralhadora giratória': eu apenas trago argumentos e fatos migalheiro, nada mais. Para uma pessoa ser ética ela não precisa ter determinada religião, como muitos ateus éticos comprovam; a ética juridicamente válida é aquela de benefícios demonstráveis empiricamente. No mais, eu não disse nada sobre 'aborto', eu falei sobre casais que não querem ter filhos – métodos anticoncepcionais, já ouviu falar? (a menos que você considere aborto a prática sexual com preservativo ou algo que não seja a pílula do dia seguinte – que, pela tese do Supremo, sequer seria aborto porque inexistiria vida). Celibato foi usado no sentido corriqueiro: pessoa que não mantém relações sexuais – pouco importando o motivo; (v) caro Dávio, lerei sua Suma Teológica de São Tomás de Aquino, mas fato é que a fé católica e nenhuma outra pode ser imposta a terceiros. Isso é fato, sob pena de totalitarismo religioso. Mas fato é que é a fé que faz com que muitos continuem persistindo, sendo, portanto, do interesse de muitos (ao menos) que ela continue existindo; (vi) meu caro, você não pode querer afastar o uso de um sistema por causa de suas deturpações. Oficialmente, quem governa são os eleitos. Se não pensarmos assim, teremos que acabar com o Estado de Direito e viver na anarquia... Se fatores econômicos e outros influenciam as decisões do político, de qualquer forma é este que tomará as decisões e o eleitor sabe disso. Isso, por si, legitima nossa democracia representativa. No mais, você realmente precisa estudar Direito Constitucional... A expressão 'elitismo democrático' consta da obra de José Afonso da Silva, quando este autor critica esta estapafúrdia teoria (que configura uma verdadeira contradição em termos, mas é defendida, veja também em Canotilho); (vii) Graças a Deus que o Brasil não é uma Teocracia, pois Ele deve sofrer cada vez que Seu nome é usado em vão pelos governantes que se julgam Seus representantes na Terra... As pessoas tem o direito de ver respeitada sua prática religiosa pessoal, dentro de sua residência e/ou igreja, assim como sua liberdade de acreditar no que quiser, mas nenhuma pessoa tem o direito de impor sua visão religiosa de mundo a terceiros. A liberdade religiosa é um direito fundamental de todos Dávio, não só dos seus católicos: as minorias religiosas também são titulares deste direito fundamental – parafraseando a precisa lição de Canotilho, a liberdade religiosa é o direito de não ser influenciado pela religião de terceiros. Entendimento em contrário ignora o direito fundamental à liberdade religiosa das minorias – que é um direito fundamental criado justamente para que as minorias religiosas não sejam perseguidas pelas maiorias religiosas, como os não-cristãos foram perseguidos durante séculos... No mais, o termo 'aliança' não abarca qualquer prática de fé, mas proíbe que o Estado beneficie determinada religião ou então use lições de determinada religião para pautar políticas estatais. Ninguém tem que ser ateu, mas também ninguém pode querer impor sua fé religiosa a terceiros. São duas idéias totalmente conciliáveis para quem não é extremista em sua posição. Eu não falo nem nunca falei que assassinatos contra homossexuais seriam mais graves que outros, apenas que homossexuais são assassinados apenas por serem homossexuais, o que não ocorre com heterossexuais quanto a sua heterossexualidade – estes não sofrem crimes de ódio, aqueles sofrem. Isso é o que Olavo de Carvalho e seus seguidores se recusam a ver, por mais que isso esteja evidente a qualquer um que não feche os olhos deliberadamente. Quanto à influência religiosa na legislação, você exalta apenas as questões positivas, eu aponto os totalitarismos: menosprezo à mulher e aos filhos (verdadeira 'coisa' nas mãos do homem-pai), especialmente os oriundos de relações não-matrimoniais, indissolubilidade do matrimônio à custa da felicidade das pessoas... exemplos são diversos; (viii) dogmas sempre foram usados aqui no seu sentido comum, bem descrito no Dicionário Houaiss como 'ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível, cuja verdade se espera que as pessoas aceitem sem questionar'. Esse é o sentido que sempre dei ao termo. É claro que você deve achar que o não-questionamento deveria ser 'natural' porque o dogma estaria 'necessariamente certo'... Mas fato é que muitos discordam de você migalheiro e é evidente que você não tem o direito de querer impor seu ponto de vista aos outros, como ninguém a você – e note bem: você querer que as pessoas adotem seu ponto de vista é totalitarismo, agora os outros quererem que se imponha que você (e qualquer outro) não imponham seus pontos de vista e aceitem as conclusões empírico-científicas não é totalitarismo, é bom-senso, é imposição de respeito/tolerância, que ambos concordamos que é pressuposto da vida em sociedade. Quanto a guerras, estas historicamente foram pautadas por motivos religiosos, o que tira o crédito de seu argumento. Realmente, dogma é questão de fé, ou nele se crê ou nele não se crê – mas, justamente, os que nele não crêem não podem ser obrigados a pautar suas vidas por eles – é este meu ponto. Nunca defendi nenhuma 'libertinagem', mas o direito das pessoas viverem suas vidas com autonomia moral, da forma como lhes faça maior sentido desde que não prejudiquem terceiros – se você vê isso como 'libertinagem' ou exagero, então você não aceita nenhuma liberdade às pessoas, não aceita sequer a noção de 'livre-arbítrio' tão propalada por diversas religiões. Você fala em 'moral universal', mas fato é que não há consenso sobre o que seria essa 'moral universal' – como você quer resolver isso, impondo sua visão de mundo aos não-católicos e, pior, não-cristãos?! Eu também não falei que a vida começa com o sistema nervoso, mas com a atividade cardíaca (sendo que nunca falei que era consenso, mas a minha opinião, pautada pela lógica e pela racionalidade). Chutar a ciência é contrariar o entendimento humano sobre o tema para se pautar por uma teoria de fé, quando o entendimento humano aponta para que vida só existe com atividade cardíaca ('coração batendo', por assim dizer); (ix) já questionei as premissas de seu amado Jerome Lejeune (em uma expressão: atividade cardíaca). Se você vai concordar ou não, é um outro problema; (x) a maioria católica não pode se impor à Constituição; a força normativa da Constituição surgiu justamente para evitar totalitarismos que as maiorias podem cometer, como a história comprovou, para evitar que paixões momentâneas das maiorias destruam projetos de sociedade (a analogia com Ulysses amarrado para não ceder às mortais sereias é exemplo clássico para tanto demonstrar) ou então que puros totalitarismos das maiorias possam ensejar a destruição das minorias, como o nazismo demonstrou. Você realmente precisa estudar Direito Constitucional caro Dávio... As maiorias também se submetem à Constituição, sendo que, se com ela não mais concordam, podem alterá-la ou convocar nova Constituinte, com todos os riscos que esta última alternativa supõe... (xi) se o contrário de meu raciocínio faça com que o católico seja tido como imparcial e mereça ser tratado com igual respeito (como deve), então o contrário daquele mesmo raciocínio fará com que todo gay também seja imparcial e mereça ser tratado com igual respeito, como também deve (para que os jogos de palavras Dávio?) Eu também prefiro que não haja nenhum absurdo, mas se um é invocado, outro a ele idêntico ou análogo também deve sê-lo, por uma questão de isonomia e bom-senso. Também não tenho nada contra você Dávio, gosto de debater com você porque você é um dos poucos que sabem realmente debater – respeitosamente e enfrentando argumentos. Apenas discordamos, fazer o que – e um debate fica belo quando dois pensamentos opostos se confrontam cordialmente, como fazemos. Considerando que nossos debates são sempre ricos em qualidade e argumentos de ambos os lados, certamente nosso amado Diretor com eles não se importa. Por fim, tenho certeza que você acha todos aqueles que não seguem os dogmas católicos estariam condenados ao 'inferno' ou algo do gênero... eu penso que você está errado, duvido que Deus seja um ser despótico que condene alguém que não prejudica terceiros e que pauta sua vida pelo amor. Mas, se quiser pensar assim, paciência, digo apenas que você está errado. Deus jamais condenará alguém quando este alguém não prejudica terceiros. Atenciosamente,"

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