Cigarro 9/9/2008 Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL "Caro Prisco, aí eu concordo plenamente. Não há um fumante que não tenha pensado em deixar de fumar. Millor Fernandes até dizia que deixar de fumar é a coisa mais fácil do mundo. Êle mesmo já havia parado mais de duzentas vezes. Nelson Rodrigues, segundo suas próprias palavras, gostava de 'cigarros que queimavam a garganta', porque 'o fumo suave não passa de um ópio de gafieira'. Mas, são opiniões. Mário Quintana, Em 'A Arte de Fumar', aconselha: 'Desconfia dos que não fumam. Esses não tem vida interior. Não tem sentimentos. O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar'. Nelson Gonçalves qualificava o fumo de 'um prazer suave, embriagador', 'fumando espero, aquela que mais quero', como na canção. Sobre o assunto, ainda, uma interessante leitura, Ensaísta americano recorre à filosofia e à arte para defender o hábito de fumar Richard Klein, professor de francês na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e editor de Diacritics, uma publicação acadêmica de alto e esotérico conceito, tinha um problema: como parar de fumar? Até fins da década de 80, era impossível lecionar, em qualquer parte do mundo, sobre aspectos de futuro do subjuntivo ou da influência de François Villon sobre a obra de Jean Genet sem estar envolto numa nuvem de giz e de fumo de Gauloises ou de Gitanes. Nos Estados Unidos, depois da Guerra do Golfo (aí está uma boa tese: alguém já examinou?), fumo deixou de ser, conforme diz nosso tango-versão na voz de Nelson Gonçalves, 'um prazer suave, embriagador', para se transformar no inimigo público número 1, deslocando da posição o abominável homem das areias, Saddam Hussein, que, segundo consta, não bebe e não fuma. Richard Klein, em vez de pregar um daqueles hediondos band-aids no braço, ou mascar a grosseira goma de nicotina, encontrou uma solução mais à altura de seu métier: escrever um livro sobre o assunto, sobre cigarro. Ilustração: Monica Schoenacker O resultado é este fascinante e tal qual o tabagismo muitas vezes também insuportável livro Sublimes (Rocco; tradução de Cigarros São Ana Luiza Dantas Borges; 264 páginas; 26 reais). Klein examinou o hábito de acender um cigarrinho à luz do fósforo, do Dunhill brilhante (as metáforas desajeitadas são resultado inevitável da leitura do volume) da literatura, filosofia e história cultural. Klein lutou contra o vício (jura ter saído vencedor) e enfrentou o Jean-Paul Sartre de O Ser e o Nada (empate). O resultado do embate é erudito, elegante e elegíaco, sem jamais baixar à aliteração, que é coisa de fumante sem imaginação, caráter ou força de vontade. Segundo Klein, os fumantes não fumam apenas pelo prazer da nicotina, mas principalmente porque os cigarros oferecem um prazer belo, sombrio e proibido, inevitavelmente doloroso, uma vez que lhes sugere uma certa noção de eternidade. É nesse ponto que nos despedimos de Nelson Gonçalves ('fumando espero aquela que mais quero') e damos um efusivo alô a Emmanuel Kant e seu conceito de sublime, que já está, inclusive, subindo a escada e batendo na porta. Richard Klein, na introdução, defende o valor da hipérbole, argumentando que, às vezes, só por meio do exagero é possível chegar à verdade. Hoje em dia, mais do que quando foi escrito o livro, em 1993, não se pode louvar os cigarros sem se parecer doentio ou perverso, restando apenas elogiá-los desmesuradamente de forma a melhor avaliar esses 'pequenos tubos de deleite', conforme a eles se referia o falecido (não de câncer no pulmão, enfisema ou infarto) escritor inglês Dennis Potter, que não foi chamado por Klein para depor no banco de testemunhas do livro. Portanto: cigarro é sublime no conceito kantiano do termo, é uma peculiaridade do belo, um prazer misturado a um certo estremecimento. Klein coopta Kant e, de posse dessa definição de sublime, afirma que, assim, é possível até transformar nossa relação com o tempo. A certa altura, Klein escreve devia em vez disso ter dado uma tragadinha o seguinte: 'Os cigarros são batutas ardentes com que você pode convocar o futuro e regê-lo'. Nelson Gonçalves também deixou registrado na cera que o canto de Carlos Gardel 'era a batuta de um maestro que fazia pulsar os corações'. Letra de David Nasser. Carlos Gardel está citado no livro de Klein. David Nasser, não. Fetiche moralista Richard Klein organizou o livro assim: prefácio, agradecimentos, introdução, seis capítulos e uma palavras dele 'Conclusão polêmica'. O primeiro capítulo, 'O que é um cigarro?', define o conceito ou noção de cigarro, com o auxílio de Sartre e do poeta parnasiano Théodore de Banville. No segundo capítulo, o que dá título ao livro, temos a celebração da natureza da beleza dos cigarros através de escritos poéticos vários em termos kantianos. O terceiro capítulo, possivelmente o mais interessante deles, 'O paradoxo de Zeno', propõe uma leitura atenta do capítulo inicial do soberbo romance de Italo Svevo A Consciência de Zeno. No quarto capítulo, temos Carmem, de Prosper Mérimée e Bizet e dos maços de cigarro. No quinto capítulo, os cigarros como amigos dos soldados. No sexto e último capítulo, 'L'air du temps', Klein evoca a ambição de todo fumante, que é desfrutar os prazeres do fumo sem nenhuma de suas desvantagens. Aqui, em vinte e poucas páginas, Richard Klein, com o auxílio de uma escritora francesa, Annie Leclerc, e um psiquiatra americano, Harvey Greenberg, arma uma hilariante leitura do filme Casablanca, que até mesmo o mais sofisticado leitor é capaz de pensar tratar-se de gozação, paródia de Woody Allen. Segundo Annie, Humphrey Bogart fuma um cigarro falocrático, que oculta sua arrogância, sua mentira, sua impotência, sua inversão, seu ódio. Que cigarrinho terá puxado nossa simpática Annie? Será que ela fuma como eu fumo? Na polêmica conclusão, Richard Klein cita exemplos históricos anteriores e sugere que, quando ele escreve o livro, a campanha antitabagista nos Estados Unidos era mais fetiche moralista do que real preocupação com a saúde. Klein previa então uma regressão no sentido contrário, ou seja, uma reação contra o lobby que combate o fumo e os grandes fabricantes de cigarros. Klein errou. Felizmente, ao menos estatisticamente, ele acerta mais do que erra. E, caro Prisco, se um dia tivermos a oportunidade de tomarmos um whisky, por exemplo no São Pedro e São Paulo, em um fim de tarde, prometo lançar minha pestilenta fumaça para o outro lado, para onde estejam as narinas dos outros fumantes. Porque, você sabe, em bar freqüentado por advogados, normalmente há fumantes." Envie sua Migalha