Indiciamento

5/1/2009
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"Os juízes são punidos, sim, com penas de censura, normalmente, como no rumoroso caso do jogador Richarlyson Barbosa Felisbino, volante do São Paulo. Em uma sentença, o Juiz Manoel Maximiliano Junqueira Filho, da Nona Vara Criminal Central de São Paulo fez alusão à possível homossexualidade do jogador, afirmando que 'futebol é coisa de macho, esporte viril, varonil, e não homossexual'. Para a maioria dos Desembargadores, 'o magistrado agiu com impropriedade absoluta de linguagem' na sentença, aplicando-lhe a pena de censura, de modo que seu nome não pode constar na lista de promoção por merecimento por um ano a partir da aplicação da pena. Essa questão de decidir erroneamente (o que é uma questão de cunho subjetivo) está bem analisada no trabalho de Evandro Lins e Silva, 'Crime de Hermenêutica e Súmula vinculante':  

'Faz mais de um século e o assunto se tornou atual em face da anunciada reforma do Poder Judiciário. Nos albores da República, um Juiz de Direito do Rio Grande do Sul considerou inconstitucional e negou aplicação a uma lei estadual, que abolira certas características essenciais à instituição do júri, como o voto secreto e as recusas peremptórias, sem justificação das partes. Os desembargadores do Tribunal de Justiça pensavam de modo contrário, entendiam que a lei era constitucional e resolveram processar o juiz por crime de prevaricação, condenando-o à pena de nove meses de suspensão do emprego.

 

 Rui Barbosa, autor que parece não ser muito lido ou do agrado dos nossos neoliberais, tomou a causa do magistrado, principiando por dizer que defendia também 'dois elementos que no seio das nações modernas constituem a alma e o nervo da liberdade: o júri e a independência da magistratura' (vide: Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal, de Edgard Costa, 1º vol., págs. 68 a 70). 

 

À segunda parte da defesa, Rui, com sutil ironia, deu o título de 'novum crimen e o crime de hermenêutica', sustentando a tese da autonomia intelectual do juiz, para que não se converta 'em espelho inerte dos tribunais superiores', quando a sua existência seria 'um curso intolerável de humilhações'.

 

Havia duas opiniões, na interpretação da lei, ambas proferidas 'com a mesma sinceridade'. E Rui sintetiza: 'A questão, em última análise, se reduz, pois, a isto: um conflito intelectual de duas hermenêuticas, falíveis ambas e ambas convencidas'.

 

A condenação do juiz resultava do 'delito de interpretação inexata dos textos', e o Tribunal Superior não tem o dom da infalibilidade: 'Um parecer subalterno pode ter razão contra julgados supremos, um voto individual contra muitos'.  

 

A controvérsia é o cerne dos debates judiciários, em qualquer causa, onde os advogados sustentam posições antagônicas quanto ao direito das partes. Na aplicação da mesma lei varia a opinião dos juízes. E nos tribunais, é freqüente haver votos vencidos, isto é, interpretações diferentes. 

 

Rui ainda indaga qual o corretivo a ser dado ao juiz quando o Tribunal reprova o erro da decisão inferior: 'A reforma da sentença? Ou a punição do juiz? Se, além da reforma da sentença se houvesse de proceder a acusação do magistrado, uma jurisprudência tal negaria à consciência do juiz singular os direitos que reconhecesse, no seu próprio seio, a todos os seus membros'. A liberdade de julgar dos juízes e tribunais inferiores, escritas em 1985, ecoam até hoje como uma advertência e uma lição.

 

O Supremo Tribunal Federal absolveu o juiz, mas não decidiu sobre a inconstitucionalidade da lei em causa, porque mesmo se julgada constitucional, teria havido erro na sua apreciação, mas não delito. O juiz voltou a considerá-la inconstitucional e foi novamente processado e condenado pelo tribunal local. Embora considerando a lei constitucional, o Supremo absolveu de novo o magistrado, que mal a interpretou, mas não cometeu os crimes que lhe foram atribuídos, 'de desobediência, ou de falta de exação no cumprimento dos deveres do cargo, o abuso de autoridade, ou prevaricação ou outro que se averigúe segundo a prova de intenção do réu'.

 

Esse episódio revela que a tentativa de submeter os juízes à obediência, à submissão, às decisões dos tribunais superiores, não é nova. Vem de longe, é um resíduo castilhista dos começos da República'."

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