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História de gerações

Ministro Gilmar Mendes e as Arcadas do Largo S. Francisco

O inquieto e subversivo espírito acadêmico, que contamina todos os que pisam nos chãos de pedra da velha e sempre nova Academia, ultrapassa gerações.

Da Redação

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Atualizado às 08:15

Não, o ministro Gilmar Ferreira Mendes não se formou nas Arcadas do Largo S. Francisco.

S. Exa., como se sabe, é egresso da UnB, indo depois estudar na Alemanha.

Mas o que pouca gente sabe é que a história do ministro, de certa forma, está entrelaçada com a Faculdade de Direito de S. Paulo.

E para conhecer essa ligação, vamos voltar um "pouco" no tempo e saborear algumas curiosidades.

Estudantada

Era manhã de 20 de junho de 1890.

O dia havia amanhecido brumoso e frio na então pequena e acanhada S. Paulo de Piratininga. Naquela data, visitavam a faculdade uns estudantes do Rio de Janeiro. Os acadêmicos paulistas resolveram promover uma recepção, e o diretor cedeu a "sala de graus" para que se realizasse o encontro. Os professores foram convidados. Mas algo inusitado aconteceu. O professor de Direito Civil, conselheiro Justino de Andrade, "num momento de mau humor talvez, proferiu conceitos ofensivos aos acadêmicos". 

Sabedores disso, os estudantes deliberaram promover um ato de repúdio, bem ao estilo franciscano: assim que o professor assumisse a cadeira para iniciar a aula, iriam todos deixar a sala em sinal de protesto. 

Mas o professor soube o que os acadêmicos estavam tramando (haveria um delator?), e resolveu enfrentar a mocidade. Chegou à sala e, em tom colérico, gritou: "Saiam! Saiam! Para a rua!

Ato contínuo os estudantes gritaram "vivas", e foram indo embora. Na saída, ao passar pelo severo mestre, dizem que alguns acadêmicos proferiram palavras agressivas contra o professor, e este também teria respondido aos alunos. 

Os jovens seguiram imediatamente para repartição de telégrafos e passaram telegramas para as autoridades da Capital Federal, pedindo a jubilação do mestre. Como destinatários das missivas estavam o general Deodoro da Fonseca, o sr. Benjamin Constant, o sr. Francisco Glicério e o sr. Campos Sales. 

O fato narrado causou bulício na sociedade. O governo abriu uma sindicância para apurar o ocorrido. Todos foram ouvidos, inclusive vários estudantes.

No dia 5 de julho de 1890, duas semanas depois, prestou depoimento o jovem acadêmico Joaquim Pereira Ferreira Mendes, que participou ativamente do movimento subversivo, já mostrando o caráter de não-conformismo que marcaria sua vida. 

Ah... o patronímico do acadêmico das Arcadas não esconde que estamos a falar do bisavô do ministro Gilmar Ferreira Mendes

E vamos agora conhecer esse nosso personagem, que possui, além da consanguinidade, inúmeras coincidências com o decano da Suprema Corte, mostrando que o espírito acadêmico transpassa as gerações. 

Acadêmico da S. Francisco

Voltemos a 1890.

Antes de depor à comissão do governo que tratou do episódio da briga dos estudantes com o professor, o imberbe Joaquim Pereira Ferreira Mendes deve ter refletido sobre as vicissitudes que o levaram aos bancos acadêmicos da pauliceia.

Descendente de bandeirantes que desbravaram o interior do país (Cel. Francisco Alexandre Ferreira Mendes e D. Leonarda Maria Ferreira Mendes), mais precisamente no Mato Grosso, o garoto Joaquim Pereira fez o caminho inverso. Deixou a pequena e histórica cidade de Diamantino, cujo nome não esconde a preciosidade que lá havia, para - numa viagem deveras penosa - ir em busca da tão sonhada carta de bacharel em São Paulo. Chegando à capital paulista, frequentou o exigente (era preciso saber, grego, latim, inglês, filosofia, aritmética etc.) curso preparatório para ingresso na Faculdade, tendo sido bem aprovado.

Quando se deram os fatos narrados com o lente de Direito Civil, já ele estava no 4º ano da Academia, pois foi aprovado com um "plenamente" no 3º ano. E lobrigava uma carreira de sucessos pela frente. 

Passado o frutífero período acadêmico, ele cola grau com distinção, a 23 de dezembro 1891, o que é registrado com panegíricos nos jornais do dia seguinte.

Promotor de Justiça

Joaquim Pereira Ferreira Mendes é então nomeado promotor público na paulista Tietê, cidade que já frequentara quando estudante, e onde proferiu discurso, certa ocasião, sendo muito aplaudido.

Mas pouco se demora no Ministério Público de São Paulo, pedindo exoneração em dezembro de 1893.

Logo a seguir, tendo voltado ao torrão natal, é nomeado diretor de instrução pública.

Já aí sua oratória e intelectualidade passam a ser admiradas pelos conterrâneos. 

Desembargador

Em 1898, com o aumento do número de desembargadores no Estado de Mato Grosso, Joaquim Pereira Ferreira Mendes, que tinha se formado havia apenas sete anos, ingressa na Corte como desembargador. Tinha ele 28 anos de idade.

Seria agora uma vida remansosa e tranquila com a família crescendo gostosamente às margens do rio Cuiabá. 

Seria, não fosse o fato de que a situação política no Estado não estava ainda organizada. Havíamos entrado de modo pouco natural no sistema republicano. As sedições pipocavam aqui e ali. Em Mato Grosso, cuja distância da Corte era continental (demorava-se pelo menos 30 dias para ir de Cuiabá ao Rio de Janeiro), bem se pode imaginar o tamanho dos problemas. 

E foi assim que, defendendo a legalidade, o desembargador Ferreira Mendes se viu envolvido numa perseguição política, tendo de se esconder por conta de uma insurreição no Estado, promovida por conservadores desgostosos com os ventos do progresso. 

Foragido, e para não pegar em armas, o único meio de salvar-se era recorrer às instituições estabelecidas. 

Supremo Tribunal Federal

Tendo como paciente o desembargador Ferreira Mendes, o então senador Antonio Azeredo impetrou no Supremo Tribunal Federal um habeas corpus. A interessante petição - na qual o autor diz que "não caberia na estreiteza de uma folha de papel, os acontecimentos de que tem sido teatro aquele longínquo estado" - foi autuada no Supremo sob o nº 1.856.

Era 20 de novembro de 1901. 

Em novembro de 1902, veio a lume a decisão do STF.

Por maioria, vencidos os ministros Lúcio de Mendonça e Espírito Santo, concedeu-se a ordem de HC ao desembargador Joaquim Pereira Ferreira Mendes. 

Curioso notar que, exatos 100 anos depois, em 2002, o bisneto do beneficiário do HC iria assumir uma cadeira na mesma Corte.  

Política

Em 1903, e observando que na época não havia as restrições que hoje existem, o desembargador Ferreira Mendes se candidata ao cargo de Deputado Federal na chapa encimada pelo senador Generoso Ponce.

Ao final, Ferreira Mendes renuncia à candidatura em nome do general Joaquim Antonio Xavier do Valle, que acaba sendo o mais votado. 

Magistratura, ensino jurídico, secretaria de Estado, letras jurídicas

Dedicando-se à magistratura, ele foi presidente do Tribunal de Justiça por quatro mandatos (1907 a 1912, 1916, 1918 e de 1919 a 1920). 

Acumulava também a função de Delegado fiscal do Liceu Salesiano S. Gonçalo. Chegou a ser cogitado para o cargo de vice-governador e, por um período, foi secretário de Estado, assumindo a pasta do Interior. Nesse tempo, ligado às letras jurídicas - tal e qual seu ilustre bisneto -, dirigia a Revista Jurídica, publicação trimestral, que continha trabalhos de doutrina e jurisprudência. 

 Mas a coincidência maior com o bisneto estava por vir. 

Em agosto de 2008, quando presidente do CNJ, o ministro Gilmar Mendes criou os mutirões carcerários. O ministro estudou o assunto a fundo, elaborou propostas e conseguiu, no curto mas profícuo período à frente do CNJ, estabelecer mecanismos que até hoje, 14 anos depois, são usados e aprimorados.

Em agosto de 1915, noventa e três anos antes dos mutirões carcerários, o governo de MT, por ato nº 1.395, nomeou o bisavô do ministro para visitar as cadeias públicas da capital do Brasil e de outros Estados, de modo a apresentar estudos sobre o melhor sistema penitenciário, uma vez que a situação no Estado era muito precária. Em 1º de março de 1916, ele apresentou um trabalho com fotografias e diagramas mostrando os sistemas visitados e como funcionava até no estrangeiro. Se tivéssemos ouvido o então desembargador, possivelmente não teríamos os problemas de hoje.  

 Ferreira Mendes colaborou em vários jornais. Foi um dos fundadores do Liga Católica e do jornal A cruz. Participou de várias associações, sendo um dos fundadores do Instituto Histórico de Mato Grosso

Aposentou-se em 1920, por problemas de saúde.

Era casado com D. Maria Marques Ferreira Mendes, falecida em 1908, com quem teve nove filhos: 

Lamartine Ferreira Mendes (formado também pelas Arcadas, turma 1918; foi promotor de Justiça em SP, auditor da Justiça Militar e poeta inspirado);

Prof. Francisco Alexandre Ferreira Mendes;

Waldemiro Ferreira Mendes;

Guiomar Ferreira Mendes Feitosa (coincidentemente o mesmo nome da esposa do ministro, a dra. Guiomar Feitosa);

D. Maria Josefina Mendes Garcia;

Mario Ferreira Mendes (casado com Castorina Sabo Mendes, são avós do ministro Gilmar Ferreira Mendes);

D. Zilda Mendes Gardés;

Prof. Imilda Ferreira Mendes; e,

Joaquim Pereira Ferreira Mendes Filho.   

Enfermo por muitos anos, faleceu em 1933, deixando imorredouro trabalho e legando a seus descendentes a chama do bom combate. 

Como se vê, o ministro Gilmar Mendes não só faz a história, como tem muita para contar. 

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