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"Estado de defesa"

Minuta golpista na casa de ex-ministro de Bolsonaro - e agora?

Objetivo do documento era reverter resultado da eleição presidencial de 2022.

Da Redação

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Atualizado às 10:39

A polícia Federal encontrou, em busca e apreensão na residência de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, uma proposta de decreto (veja a íntegra abaixo) para que Bolsonaro instaurasse estado de defesa na sede do TSE. O documento de três páginas, feito em computador, foi encontrado no armário do ex-ministro durante busca e apreensão realizada na última terça-feira, 10.

 (Imagem: Arte Migalhas)

Minuta encontrada em busca na casa de Anderson Torres é considerada inconstitucional.(Imagem: Arte Migalhas)

O objetivo do documento era reverter o resultado da eleição presidencial de 2022, da qual Lula foi vencedor. O texto previa, além da decretação do estado de defesa, a criação de uma comissão controlada pelo governo Bolsonaro para fazer a "apuração da conformidade e legalidade do processo eleitoral".

A minuta ainda previa as quebras de sigilos de correspondência e de comunicação telemática e telefônica dos membros do TSE.

A medida, no entanto, seria inconstitucional, em razão da indevida interferência do Executivo no processo eleitoral. Agora, a PF deve investigar as circunstâncias da proposta.

senador Randolfe Rodrigues já peticionou ao STF para que, além de Torres, o ex-presidente Jair Bolsonaro também seja investigado pelo documento, em inquérito autônomo.

"Diante da gravidade dos fatos narrados, requer-se o desmembramento do presente inquérito e a constituição de um inquérito autônomo, por conexão sob relatoria do eminente ministro Alexandre Moraes, para apurar em especial os fatos aqui narrados."

 (Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress)

Minuta encontrada em busca na casa de Anderson Torres, ex-ministro de Bolsonaro, é considerada inconstitucional.(Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress)

Teor inconstitucional

Na análise do constitucionalista Saul Tourinho Leal, a referida minuta veicula um decreto absolutamente inconstitucional.

Isso porque, segundo o art. 136 da Constituição, o Estado de Defesa só pode ser adotado em "locais" restritos e determinados. Tanto que deve se especificar "as áreas a serem abrangidas".

"Um poder - como é o Judiciário - não é um 'local', tampouco uma 'área'. Não há Estado de Defesa sobre um Poder."

O advogado observa que a minuta anuncia a suspensão das atividades de toda a Justiça eleitoral brasileira - não só do TSE - e, em seu lugar, coloca uma tal "Comissão de Regularidade Eleitoral", composta por militares e outros, mas, sem qualquer juiz. "É mais uma inconstitucionalidade, pois não há, dentre as medidas possíveis de serem adotadas no Estado de Defesa, a criação de um equivalente ao Poder Judiciário." 

Ele prevê, ainda, uma imunidade absoluta quanto a decisões tomadas por essa "comissão", que passaria a agir como um órgão soberano, imune ao Judiciário, ao STF e, principalmente, à Constituição.

Acontece que, segundo esclarece Saul Tourinho Leal, no Estado de Defesa, o Poder Judiciário segue em pleno funcionamento, inclusive fiscalizando algumas medidas tomadas enquanto vigente a medida. 

A minuta do decreto prevê também que durante o tal Estado de Defesa, o acesso às dependências do TSE e de toda a Justiça Eleitoral no país ficaria suspenso. Mas, segundo a Constituição, no seu art. 136, § 1º, II, qualquer ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos só é possível na hipótese de calamidade pública. "Não é o caso."

"Quando Ulisses Guimarães levantou um exemplar da Constituição recém promulgada - exemplar esse cuja réplica foi roubada do STF durante o ataque golpista à sede do Tribunal -, ele pediu que tivéssemos cuidado com o que ele chamou de 'Traidores da Constituição, Traidores da Pátria'. Ulisses era um homem que conhecia o seu próprio país. Sabia sobre o que falava. Quem quer que tenha redigido esse decreto, não passa de um grande Traidor da Constituição."

Sistema constitucional de crise

Na coluna migalheira Federalismo à brasileira, Rafael de Lazari, doutor em Direito Constitucional e pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos, explica que os chamados mecanismos constitucionais de gerenciamento de crises são de fundamental importância para as seguranças jurídica e institucional.

"A Constituição Federal foi feita para 'valer' tanto em um cenário de estabilidade como em um contexto de instabilidade institucional. Casuísticas diferenciadas à parte, haverá entre elas um denominador comum: a aplicação da mesma Constituição."

Na coluna Constituição na Escola, Lucas Iosicazo Kanaguchi e Rafael Felix explicam que o estado de defesa, previsto no artigo 136 da CF, é decretado pelo presidente da República e, após, deve ser confirmado pelo Congresso, em votação por maioria absoluta.

A medida tem como objetivo a preservação ou restabelecimento, em locais restritos e determinados, da ordem pública ou da paz social, quando ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

O decreto que o institui deverá determinar seu tempo de duração e especificar as áreas a serem abrangidas, além de permitir a adoção de medidas coercitivas como, por exemplo: (i) restrição dos direitos de reunião, do sigilo de correspondência e do sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; bem como (ii) a ocupação e o uso temporário de bens e serviços públicos, respondendo a União pelos danos causados e custos decorrentes. O tempo de duração não poderá ser superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período.

"Fora de contexto"

Após a repercussão da divulgação do documento, Anderson Torres disse, em seu Twitter, que havia em sua casa uma pilha de documentos para descarte, e que tudo seria levado para ser triturado no MJ/SP.

Disse, ainda, que o documento foi vazado fora de contexto, "ajudando a alimentar narrativas falaciosas contra mim". "Respeito a democracia brasileira."

 (Imagem: Reprodução/Twitter)

Anderson Torres diz que minuta golpista encontrada em sua casa seria triturada.(Imagem: Reprodução/Twitter)

Prisão

Nesta semana, o ministro Alexandre de Moraes determinou a prisão de Anderson Torres em razão dos atos antidemocráticos do Dia da Infâmia - 8 de janeiro. Torres era secretário de Segurança do DF no dia, cargo do qual foi exonerado logo em seguida.

No dia do ato, Torres estava de férias com a família nos Estados Unidos, onde ainda se encontra. Ele afirmou que retornará ao Brasil e irá se apresentar à Justiça.

Leia a íntegra da minuta encontrada:

DECRETO nº   DE   DE2022

Decreta Estado de Defesa, previsto, nos arts. 136, 140 e 141 da Constituição Federal, com vistas a restabelecer a ordem e a paz institucional, a ser aplicado no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, para apuração de suspeição, abuso de poder e medidas inconstitucionais e ilegais levadas a efeito pela Presidência e membros do Tribunal, verificados através de fatos ocorridos antes, durante e após o processo eleitoral presidencial de 2022.  

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso de suas atribuições que lhe conferem os artigos 84, inciso IX, 136, 140 e 141 da Constituição,

DECRETA:

Art. 1° Fica decretado, com fundamento nos arts. 136, 140, 141 e 84, inciso IX, da Constituição Federal, o Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília, Distrito Federal, com o objetivo de garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022, no que pertine à sua conformidade e legalidade, as quais, uma vez descumpridas ou não observadas, representam grave ameaça à ordem pública e a paz social.

§1°. Fica estipulado o prazo de 30 (trinta) dias para cumprimento da ordem estabelecida no caput, a partir da data de publicação deste Decreto, podendo ser prorrogado uma única vez, por igual período.

§2°. Entende-se como sede do Tribunal Superior Eleitoral todas as dependências onde houve tramitação de documentos, petições e decisões acerca do processo eleitoral presidencial de 2022, bem como o tratamento de dados telemáticos específicos de registro, contabilização e apuração dos votos coletados por urnas eletrônicas em todas as zonas e seções disponibilizadas em território nacional e no exterior.

§3°. Verificada a existência de indícios materiais que interfiram no objetivo previsto no caput do art. 1° a medida poderá ser estendida às sedes dos Tribunais Regionais Eleitorais.

Art. 2° Na vigência do Estado de Defesa ficam suspensos os seguintes direitos:

I - sigilo de correspondência e de comunicação telemática e telefônica dos membros do Tribunal do Superior Eleitoral, durante o período que compreende o processo eleitoral até a diplomação do presidente e vice-presidente eleitos, ocorrida no dia 12.12.2022.

II - de acesso às dependências do Tribunal Superior Eleitoral e demais unidades, em caso de necessidade, conforme previsão contida no §3º. do art. 1°.

§ 1°. Durante o Estado de Defesa, o acesso às dependências do Tribunal Superior Eleitoral será regulamentado por ato do Presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral, assim como a convocação de servidores públicos e colaboradores que possam contribuir com conhecimento técnico.

Art. 3° Na vigência do Estado de Defesa:

I - Qualquer decisão judicial direcionada a impedir ou retardar os trabalhos da Comissão de Regularidade Eleitoral terá seus efeitos suspensos até a finalização do prazo estipulado no § 1°, art. 19,

II - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que poderá promover o relaxamento, em caso de comprovada ilegalidade, facultado ao preso o requerimento de exame de corpo de delito à autoridade policial competente;

III - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;

IV - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;

V - é vedada a incomunicabilidade do preso.

Parágrafo único. O Presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral constituirse-á como executor da medida prevista no inciso I, do §3° do art. 136, da Constituição Federal.

Art. 4º A apuração da conformidade e legalidade do processo eleitoral será conduzida pela Comissão de Regularidade Eleitoral a ser constituída após a publicação deste Decreto, que apresentará relatório finai consolidaria conclusivo acerca do objetivo previsto no caput do art. 19.

Art. 5° A Comissão de Regularidade Eleitoral será composta por:

I - 08 (oito) membros do Ministério da Defesa, incluindo a Presidência;

II - 02 (dois) membros do Ministério Público Federal;

III - 02 (dois) membros da Polícia Federal, ocupantes do cargo de Perito Criminal Federal;

IV - 01 (um) membro do Senado Federal;

V - 01(um) membro da Câmara dos Deputados;

VI - 01(um) membro do Tribunal de Contas da União;

VII - 01 (um) membro da Advocacia Geral da União; e,

VIII - 01 (um) membro da Controladoria Geral da União.

Parágrafo único. À exceção das autoridades constantes do inciso I, cuja indicação caberá ao Ministro da Defesa, as indicações dos membros dos órgãos e instituições que integrarão a Comissão de Regularidade Eleitoral deverão ser feitas em até 24 (vinte e quatro) horas após a publicação deste Decreto no Diário Oficial da União, devendo as designações serem formalizadas em ato do Presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral.

Art. 6°. Serão convidados a participar do processo de análise do objeto deste Decreto, quando da apresentação do relatório final consolidado, as seguintes entidades:

I - 01 (um) Integrante da Ordem dos Advogados do Brasil

II - 01 (um) representante da Organização das Nações Unidas no Brasil

III - 01 (um) representante da Organização dos Estados Americanos no Brasil (Avaliar a pertinência da manutenção deste dispositivo na proposta)

Art. 7º. O relatório consolidado final será apresentado ao Presidente da República e aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, e deverá conter, obrigatoriamente:

I - apresentação do objeto em apuração

II - a metodologia utilizada nos trabalhos

III - as contribuições técnicas recebidas

IV - as eventuais manifestações dos membros componentes

V - as medidas aplicadas durante o Estado de Defesa, com as devidas justificativas

VI - o material probatório analisado

VII - a relação nominal de eventuais envolvidos e os desvios de conduta ou atos criminosos verificados, de forma individualizada.

Parágrafo único. A íntegra do relatório final consolidado será publicada no Diário Oficial da União.

Art. 8° Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, de de 2022. 201° ano da Independência 134º ano da República

Jair Messias Bolsonaro

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