STJ admite motivo torpe por racismo em agressão que resultou em morte
Vítima foi agredida por seguranças e funcionários do Carrefour em Porto Alegre/RS; 6ª turma entendeu que indícios de racismo estrutural justificam a incidência da qualificadora na pronúncia.
Da Redação
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Atualizado às 17:37
A 6ª turma do STJ restabeleceu, por unanimidade, a qualificadora do motivo torpe na decisão de pronúncia dos réus acusados pela morte de João Alberto Silveira Freitas, ocorrida em novembro de 2020 em uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre/RS.
O colegiado deu provimento a recurso especial do MP/RS, ao entender que há indícios suficientes de que o homicídio pode ter sido motivado por preconceito racial associado à vulnerabilidade econômica da vítima, razão pela qual a análise da circunstância deve ser submetida ao Tribunal do Júri.
Entenda o caso
João Alberto morreu após ser violentamente agredido por seis pessoas, entre seguranças e funcionários do estabelecimento. De acordo com os autos, ele foi imobilizado no chão e submetido a compressão torácica prolongada, o que provocou asfixia por sufocação indireta, conforme apontado no laudo de necropsia.
Na decisão de pronúncia, a Justiça reconheceu, entre outras circunstâncias, a qualificadora do motivo torpe, vinculada ao preconceito racial e à condição socioeconômica da vítima.
Contudo, a 2ª Câmara Criminal do TJ/RS, por maioria, acolheu embargos infringentes para afastar a qualificadora, sob o argumento de inexistirem elementos probatórios mínimos capazes de demonstrar motivação discriminatória.
Inconformado, o MP/RS recorreu ao STJ, sustentando que a exclusão da qualificadora contrariou a lógica da pronúncia, que se limita a um juízo de admissibilidade da acusação, sem exame aprofundado do mérito.
Motivo torpe por racismo
Para o Ministério Público, o TJ/RS partiu de uma premissa equivocada ao tratar a motivação discriminatória como fundada apenas em uma percepção subjetiva da delegada responsável pelo inquérito.
Segundo o órgão acusador, o conjunto probatório revela indícios consistentes de padrão discriminatório institucionalizado, marcado por racismo estrutural.
Depoimentos colhidos indicam a existência de um chamado "departamento de prevenção" no supermercado, responsável por abordagens ostensivas e constrangedoras, baseadas em critérios subjetivos como aparência, vestimentas e estereótipos sociais.
Ex-funcionários relataram a prática de vigilância seletiva e, em algumas situações, autorização para uso de violência.
No dia dos fatos, embora João Alberto tivesse pago regularmente suas compras e não tivesse praticado qualquer ilícito, passou a ser monitorado de forma ostensiva. Após deixar o estabelecimento, foi contido com violência extrema, tendo seus pedidos de socorro e os alertas de testemunhas ignorados.
O parquet também sustentou que, na fase da pronúncia, apenas qualificadoras manifestamente improcedentes podem ser afastadas, devendo eventuais dúvidas ser resolvidas em favor da submissão do caso ao Tribunal do Júri, à luz do princípio do in dubio pro societate.
A acusação ainda rechaçou o argumento de inexistência de ofensas verbais racistas, pontuando que o preconceito pode se manifestar por atos, inclusive por meio de violência física, conforme previsto no art. 140 do CP, inclusive na figura da injúria racial.
Racismo velado
O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, votou pelo provimento do recurso especial do MP/RS para restabelecer a qualificadora do motivo torpe.
Segundo o ministro, a ausência de prova literal, como palavras ou gestos explicitamente racistas, não impede o reconhecimento da qualificadora na fase de pronúncia.
O racismo, observou, pode se manifestar de forma velada, estrutural e institucional, especialmente por meio de abordagens e reações desproporcionais dirigidas a pessoas negras e socialmente vulneráveis.
"Assim, a motivação torpe sob o aspecto do preconceito racial não pode ser afastada apenas pela ausência de prova literal ou gestual, pois o racismo se manifesta em estruturas e ações de contenção desproporcionais contra indivíduos negros e vulneráveis. Uma reação violenta pode dialogar com estruturas de exclusão e vigilância dirigidas à população negra sem exigir certeza nessa fase processual."
Nesse contexto, mencionou o fato de a vítima ser negra e de, à exceção de um, os agressores não o serem, além do monitoramento ostensivo, da abordagem e da contenção violenta, elementos que, em conjunto, podem refletir preconceito estrutural.
"O fato notório de a vítima ser negra enquanto os agressores não o eram, salvo um, é um dado que não pode ser desprezado. O intenso monitoramento do ofendido no interior de um estabelecimento comercial, a abordagem, contenção em tese desmedidas, pode ser, sim, decorrente da condição social e socioeconômica da vítima. O preconceito velado explica a intensidade da reação e a desconfiança desproporcional."
Também foi considerado relevante o depoimento da delegada de Polícia, que apontou diferenciação na abordagem com base em estigmas sociais, aparência e cor da vítima, ainda que não haja confissão ou manifestação explícita de motivação racial.
Segundo o relator, "submeter a análise da motivação torpe ao conselho de sentença é uma questão de preservação da competência constitucional do Tribunal de Júri", a quem cabe a avaliação definitiva do conjunto probatório e do contexto histórico-social do caso.
Resultado
Com base nesses fundamentos, a 6ª turma do STJ não conheceu dos agravos em recurso especial e deu provimento ao recurso especial do MP/RS, determinando o restabelecimento da qualificadora do motivo torpe na decisão de pronúncia.
- Processo: REsp 2.187.346




