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Mover ação contra

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Atualizado em 16 de agosto de 2021 09:27

O leitor Rubem Milhomem envia à seção Gramatigalhas a seguinte mensagem:

 

"Desde a faculdade, nas aulas de processo civil e nos estágios, os professores diziam que não se ajuíza ação 'contra' ninguém, mas 'em face de' alguém. A explicação era que a ação se dirige ao Estado, e não à parte contrária, para que aquele faça prevalecer a pretensão. Já vi isso inclusive em livro de Português Jurídico. Agora, uma colega de trabalho, que trabalha no setor de revisão, diz que o correto é 'contra'. O que eu faço?"

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Mover ação contra

1) Geraldo Amaral Arruda anota que o emprego de contra, em expressões como mover ação contra, decorre "da preferência pela fórmula tradicional, que é satisfatória para descrever como é vista e sentida a relação entre os litigantes", o que fez com que Chiovenda, Liebman e Cândido Rangel Dinamarco não deixassem de referir a existência de uma contenda judiciária e de usar a preposição contra para fazer menção a tal disputa.

 

 

 

 


2)
Bem por isso, complementa tal autor ser "evidente que, ao referir-se a essa luta a respeito de interesses conflitantes, o juiz retrate o que vê ante si, dizendo que as partes contrárias não estão apenas uma em face da outra, mas que vê perante o juízo adversários que se enfrentam em contenda judiciária, uma contra a outra".

3) E alinha tal autor diversos exemplos colhidos em obra de Liebman, traduzida para o vernáculo por Cândido Rangel Dinamarco, e de Chiovenda, na tradução portuguesa de J. Guimarães Menegale, sempre em fidelidade para com o uso original, no qual se patenteia o antagonismo entre as partes de um processo e o próprio emprego da preposição contra e não da locução em face de.1

 

4) Sérgio Bermudes, notável advogado e mestre de processo, marcou, por sua vez, posição específica, escrevendo artigo com o significativo título A Favor do Contra, no qual acentua os seguintes aspectos:

a) o pedido de tutela se dirige efetivamente contra o Estado, devedor da prestação jurisdicional;

 

b) "cunhou-se, então, a locução prepositiva em face de, com o ânimo de deixar bem nítido que o autor não ajuizou a ação contra o réu, mas contra o Estado";

 

c) "esse empenho de esclarecer, demasiadamente, as coisas só faz confundi-las e baralhá-las, aos olhos do homem comum, destinatário da administração da justiça, que entende, perfeitamente, até por atavismo, que uma ação haja sido proposta contra ele, mas queda perplexo e nervoso, quando ouve dizer que uma ação foi proposta em face dele";

 

d) "infelizmente, o emprego da locução em face de vai ganhando terreno e expulsando da linguagem técnica o contra imemorial";

 

e) "não há motivos de ordem lógica, ou jurídica, para o culto da expressão em face dele, incompatível com a tradição e o claro entendimento do alcance da iniciativa do autor, que vai a juízo contra o réu";

 

f) "desde as fontes, identifica-se a ação, e dela se fala como um movimento do autor contra o réu";

 

g) "os clássicos da antiga literatura processual portuguesa e brasileira sempre se referiram à ação de uma parte contra a outra", como se pode confirmar em Pereira e Sousa, Paula Batista, Barão de Ramalho e João Monteiro;

 

h) "se os avanços científicos convenceram os processualistas brasileiros de que a ação se exerce contra o Estado, e não contra o réu, não chegaram a influir na sua linguagem, como revelam eloqüentes amostras, colhidas em apressada e perfunctória consulta, nos mananciais mais abundantes", em obras de Pontes de Miranda, José Frederico Marques, Moacyr Amaral Santos e José Carlos Barbosa Moreira, este último, além de enfileirado entre os melhores processualistas do mundo, também "de notórios desvelos com o apuro da linguagem técnica";

 

i) em conclusão, "num país em que tanto se deve reformar, da estrutura de várias instituições ao caráter de muitos homens, convém deixar quieto, no seu canto, o que não precisa ser mudado", de modo que é preciso ser contra ao em face, "aliás, de pureza vernacular duvidosa".2

5) Não se olvide que de uso corrente é a preposição contra em nosso Código Civil de 1916 - de reconhecido apuro lingüístico por decisiva atuação de Rui Barbosa - para significar a contraposição dos pólos ativo e passivo de uma demanda (em estruturação mantida pelo Código de 2002, nos casos em que persiste a respectiva determinação):

a) "... ação do segurado contra o segurador e vice-versa..." (art. 178, § 6º, II);

b) "... ação do proprietário do prédio desfalcado contra o do prédio aumentado pela avulsão..." (art. 178, § 6º, XI);

c) "... toda e qualquer ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal..." (art. 178, § 10, VI);

 

d) "... aqueles (herdeiros do doador) podem prosseguir na ação iniciada pelo doador, continuando-a contra os herdeiros do donatário, se este falecer depois de contestada a lide" (art. 1.185);

 

e) "Se o mandatário obrar em seu próprio nome, não terá o mandante ação contra os que com ele contrataram, nem estes contra o mandante" (art. 1.307);

 

f) "... terá (o mandante) contra este (o procurador) ação pelas perdas e danos resultantes da inobservância das instruções" (art. 1.313);

 

g) "... ficam salvas ao constituinte as ações, que no caso lhe possam caber, contra o procurador" (art. 1.318);

 

h) "Se o gestor se fizer substituir por outrem, responderá pelas faltas do substituto, ainda que seja pessoa idônea, sem prejuízo da ação, que a ele, ou ao dono do negócio, contra ela possa caber" (art. 1.337);

 

i) "Sempre que houver ação regressiva de uns contra outros herdeiros, a parte do co-herdeiro insolvente dividir-se-á em proporção entre os demais" (art. 1.798).

6) De igual modo, o Código de Processo Civil - diploma recente e de conhecida apuração formal quanto à precisão científica e quanto ao zelo pelo vernáculo - registra, em diversas passagens, o uso da preposição contra para estabelecer o antagonismo das demandas judiciais:

a) "... oferecer oposição contra ambos" (art. 56);

 

b) "... contra o outro prosseguirá o opoente" (art. 58);

 

c) "... contra ele correrá o processo" (art. 66, primeira parte);

 

d) "...o processo continuará contra o nomeante" (art. 66, segunda parte);

 

e) "... não poderá intentar nova ação contra o réu" (art. 268, parágrafo único);

 

f) "É permitida a cumulação, num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos..." (art. 292, caput);

 

g) "Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: ... II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência..." (art. 593, II);

 

h) "Da execução por quantia certa contra devedor solvente" (rubrica do Capítulo IV, que precede o art. 646);

 

i) "Da execução contra a Fazenda Pública" (rubrica da Seção III, que precede o art. 730);

 

j) "... pode o juiz ouvir, em três (3) dias, aquele contra quem (o protesto contra a alienação de bens) foi dirigido..." (art. 870, parágrafo único).

7) Também nessa exata conformidade, é de se ver que Francisco Fernandes registra se deva dizer ação contra, simplesmente ignorando a existência de ação em face de, com base em exemplo de Camilo Castelo Branco: "Aconselharam-no que intentasse ação judiciária contra os sócios".3

 

8) Igual proceder tem Celso Pedro Luft, que apenas refere ação contra, nada aduzindo acerca de ação em face de.4

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1Cf. ARRUDA, Geraldo Amaral. A Linguagem do Juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 89-93.
2Cf. Revista de Processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. vol. 65, p. 219-223.
3Cf. FERNANDES, Francisco. Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos. 2. ed., 6. impressão. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. p. 8.
4Cf. LUFT, Celso Pedro. Dicionário Prático de Regência Nominal. 4. ed. São Paulo: Ática, 1999. p. 26.

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* Publicado originalmente em 12/3/08.