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O novo Código Comercial e a lei das S/A

Tenho dúvidas sobre a necessidade e pertinência de um "novo" Código Comercial, embora seja certo que alguns valores essenciais do Direito Comercial, mencionados na minuta de Anteprojeto - vários dos quais previstos na Constituição - merecem ser discutidos e eventualmente "resgatados".

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Atualizado às 09:58

O novo Código Comercial e a lei das S/A

Nelson Eizirik*

Vem sendo divulgado que estaria em gestação um novo Código Comercial, criando-se na Câmara dos Deputados uma comissão especial para cuidar de sua tramitação. A propósito, o defensor público da ideia, o jurista Fábio Ulhoa Coelho, Professor Titular de Direito Comercial da PUC/SP, publicou recentemente a obra "O Futuro do Direito Comercial", na qual minuta um Anteprojeto de Código. As linhas que seguem visam a estimular o debate sobre o tema, reconhecendo a seriedade da iniciativa e o rigor acadêmico de seu proponente.

Tenho dúvidas sobre a necessidade e pertinência de um "novo" Código Comercial. É certo que alguns valores essenciais do Direito Comercial, mencionados na minuta de Anteprojeto - vários dos quais previstos na Constituição - merecem ser discutidos e eventualmente "resgatados": a liberdade de iniciativa e de competição; a função social da empresa; a proteção jurídica aos investimentos privados; a licitude do lucro na exploração regular da empresa. Ninguém contesta que os títulos eletrônicos e o comércio na internet estão a merecer uma regulação própria. Também é indiscutível que o tratamento conferido pelo Código Civil de 2002 (clique aqui) às sociedades, particularmente as limitadas, é inadequado e "engessador" das atividades empresariais. Ademais, devem ser contidos "arroubos" das autoridades fiscais e previdenciárias, às vezes aceitos em decisões judiciais, de responsabilizar os sócios (inclusive minoritários) e administradores por dívidas da pessoa jurídica.

Por outro lado, temo que "codificar" tais valores condene-os à esterilização e imobilidade, o oposto do que se deseja para o Direito Comercial, necessariamente dinâmico e adaptável às inovações tecnológicas e econômicas. A noção totalizante de Código não estará superada pela emergência de leis especiais e sua regulamentação administrativa, "micro-modelos" jurídicos maleáveis e adequados às atividades que disciplinam?

Ademais, em matéria de Direito Societário e Empresarial, o que vemos, crescentemente, são iniciativas inovadoras dos particulares, reunidos em entidades privadas, mediante a autorregulação de suas atividades. Não se pode ignorar, por exemplo, o notável sucesso do "Novo Mercado", criado pela Bolsa de Valores, que vem permitindo a conjugação da proteção aos investidores com a capitalização de mais de uma centena de companhias abertas e o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, sem (e talvez por isso) que uma norma legal tenha sido editada. No mesmo sentido, é de se mencionar as atividades desenvolvidas pela ANBIMA, na autodisciplina da conduta dos bancos de investimento e gestores de recursos, ou do CONAR, também entidade privada, que há muito regula os adequados padrões éticos da publicidade.

Se tenho dúvidas sobre o modelo mais adequado à regulação da atividade empresarial - se o codificado ou se o multifacetado e aberto - estou firmemente convicto de que incluir a disciplina das sociedades por ações no Código Comercial seria manifesto equívoco, capaz de gerar efeitos desastrosos. A vigente Lei das S/A (lei 6.404/76 - clique aqui) resultou de Projeto elaborado pelos juristas Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, amplamente discutido com a sociedade e no Congresso Nacional. É absolutamente consensual entre os advogados e empresários que se trata de lei excelente, verdadeiro monumento legislativo, que instituiu e regulou adequadamente, dentre tantas outras matérias, o acordo de acionistas, a transparência de informações das companhias abertas, os deveres fiduciários dos administradores, criou novos valores mobiliários e bem ordenou os antigos, disciplinou a figura do acionista controlador, assim como a oferta pública de alienação do controle. Tão boa é a lei que seguidamente "descobrimos", ao ler com mais cuidado seus dispositivos, novas possibilidades de sua aplicação aos casos concretos com que nos deparamos na prática do Direito Societário.

Ademais, a lei das S/A constitui um magnífico sistema de ordenação das companhias, fruto da experiência prática e conhecimento teórico dos redatores do Projeto. O conceito de "sistema", desde sua origem grega, significa o composto, a totalidade construída, integrada por várias partes necessariamente ordenadas e interligadas. O ordenamento contido na lei das S/A é tão sistemático que permite a sua interpretação "por dentro", mediante a análise conjunta de seus dispositivos, para depois aplicá-los aos fatos. Ademais, resistiu a "provas de fogo", sem ter sua estrutura lógica abalada, como foram as reformas tópicas e mal redigidas realizadas em 1989, 1997 e 2001. Foi enriquecido nos últimos anos com as modificações no tratamento das demonstrações contábeis, adequadamente regulamentadas pela CVM. Agora, mediante MP, pequenos ajustes estéticos ajudarão a manter sua atualidade, agilizando o processo de emissão de debêntures e permitindo a realização de assembleias de acionistas virtuais.

Se assim é, por que incluir a disciplina das companhias no Código? Em nome da consagração dos valores antes mencionados, que se deseja resgatar? Ora, a lei das S/A já contém os valores essenciais à regulação das companhias, sedimentados pela doutrina, jurisprudência e prática dos negócios: a sua legítima finalidade lucrativa; a limitação da responsabilidade dos acionistas; o princípio majoritário; a tutela de direitos essenciais dos acionistas minoritários; os deveres fiduciários do acionista controlador e dos administradores; o regime da transparência das informações.

Não me parece razoável simplesmente "transportar" as disposições da lei 6.404/76 para dentro de um Código em nome de sua completude. Primeiro porque grande seria a tentação dos legisladores de modificar alguns de seus artigos, com resultados imprevisíveis. Segundo, porque, ainda que nada de sua substância fosse modificado, seus artigos seriam renumerados, sairiam do lugar, mudariam de seção ou capítulo, tudo a dificultar a vida dos que a consultam. Ora, uma boa lei é um bem público, como um parque, para ser usada pelos destinatários. Para que mudar os bancos e as árvores de lugar, se os usuários já sabem onde encontrá-los e como desfrutar de seus benefícios? Tratar no Código só das companhias fechadas e deixar a vigente lei das S/A cuidando das abertas, ou, pior ainda, incumbir a CVM, já tão assoberbada, de toda a sua regulação, não faria o menor sentido, seria mutilar um sistema bem estruturado sem qualquer utilidade prática.

Em "O Círculo dos Mentirosos", Jean-Claude Carrière conta a seguinte história do pícaro personagem Nasreddin Hodja, habitante de algum país do Oriente Médio: um dia, estando ele a cercar sua casa com miolos de pão, um homem que passava perguntou a razão dessa inusitada prática, ao que ele respondeu: - Protege-me dos tigres. - Mas não há tigres aqui. - Então, você está vendo como funciona bem! Esperemos, para o bem de nosso Direito Societário, que a ameaça de inclusão da lei das S/A no Anteprojeto de Código Comercial seja como os imaginários tigres de Hodja.

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*Advogado no Rio de Janeiro e em São Paulo, sócio do escritório Carvalhosa e Eizirik Advogados

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