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Bolsa Estupro

Projeto traz o nascituro como foco de proteção e pretende ofertar à mulher vítima de estupro a opção de gerar o filho com a tutela estatal.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Atualizado em 18 de junho de 2013 14:37

O Estatuto do Nascituro foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal e agora também recebeu sinal verde da Comissão de Finanças e Tributação. Necessita, ainda, do aval da Comissão de Constituição e Justiça para ser encaminhado para o Senado.

Referido projeto, que tramita desde 2007, traz o nascituro como foco de proteção. Dentre outras garantias conferidas a ele, pretende ofertar à mulher vítima de estupro a opção de gerar o filho com a tutela estatal, sem a realização do abortamento previsto em lei. Para tanto, assegura o direito à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da mãe; o direito de ser encaminhado para adoção, com a concordância da genitora; a obrigatoriedade do Estado de arcar com os custos da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, a não ser que seja identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, que passará a ser o responsável pela pensão alimentícia, nos termos da lei.

Enquanto a lei estiver contida no interior do tubo de ensaio como projeto, é o momento propício para amadurecê-la e colocá-la na pauta dos debates, visando a encontrar uma solução que seja coerente com o ambiente social e que espelhe, pelo menos, a maioria das faces da vontade popular. A proposta reacendeu polêmicas rotineiras a respeito de tema tão turbulento. Não como um fogo que arde e rapidamente se apaga, mas sim como uma chama crepitante. Daí que, com o dizia Platão, precisamos seguir até onde o vento dos argumentos nos leva.

Percebe-se, numa análise até superficial, que a intenção é oferecer à mulher estuprada a opção de gerar o filho, com a assistência do Estado, que contribuirá com uma espécie de "bolsa-estupro", assim já batizada no projeto. Tal medida visa a impedir a realização do aborto legal. Prevê também que, se o estuprador for identificado, a ele recairá a responsabilidade pela inserção do nome na certidão de nascimento e a prestação de alimentos. Se não for, a responsabilidade alimentar continua com o patrocínio estatal.

Aparentemente, a prática carrega um argumento de sedução social, pois possibilita também o encaminhamento da criança para adoção. Porém, o entrave maior, sem qualquer confrontação com grupos religiosos e feministas, reside na intimidade da mulher estuprada. Será que terá ela condições de registrar o filho em nome do pai estuprador que, a partir daí, terá a obrigatoriedade de bancar os alimentos e, consequentemente, exercer, mesmo que distante, a guarda do filho, podendo, dependendo da situação, até mesmo pleiteá-la judicialmente?

É uma indagação que encontra um obstáculo instransponível para a decisão da mulher, vez que o filho foi gerado com violência ou grave ameaça e não concebido pela vontade dos genitores. É um sofrimento que carregará para o resto da vida, com todos os traumas decorrentes.

Ainda quando exercia as funções de promotor de justiça, atendi uma mulher recém-casada que havia sido estuprada por um homem não identificado que, sorrateiramente, durante a noite, na ausência de seu marido que trabalhava, entrou na casa, imobilizou-a e manteve conjunção carnal, que resultou em sua gravidez. Desesperada, presa nas barreiras de ordem moral e religiosa, viu-se como uma assassina e não como vítima ao optar pelo aborto legal.

O Ministério da Saúde, voltado para as ações norteadoras éticas e jurídicas dos direitos sexuais e reprodutivos ditados nos planos internacional e nacional dos direitos humanos, normatizou os procedimentos para o abortamento em caso de gravidez com violência sexual, através dos documentos "Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes" e "Atenção Humanizada ao Abortamento", ambas publicadas em 2005.1

Assim, quando se tratar de abortamento proveniente de estupro, a mulher não se vê obrigada a noticiar o fato à polícia e muito menos exigir qualquer providência judicial. Basta narrar o fato a uma junta médica credenciada, que inicialmente observará a ela a possibilidade de levar adiante a gestação, com os cuidados pré-natais adequados e as alternativas após o nascimento, que incluem a permanência com o filho ou a inserção em lar adotivo. Esgotadas as opções, a junta médica decidirá sobre a realização do ato cirúrgico, que deverá vir acompanhado do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, ainda, neste ato, a orientará a respeito das providências policiais e judiciais cabíveis, se forem do seu interesse.

Os documentos médicos referidos conferem à palavra da mulher a presunção de veracidade. Em Direito, nos crimes sexuais, em regra, também a palavra dela vem revestida de importância vital, pois ninguém se exibirá publicamente fazendo denúncia de violência sexual, submetendo-se a exame de conjunção carnal e sujeitando-se a uma série de perguntas que, no mínimo, afrontam a privacidade pessoal. Se, no entanto, a mulher relatar inverdade para a junta médica encarregada, no sentido de que não foi vítima de estupro, a responsabilidade criminal recairá somente sobre ela, isentando os profissionais da saúde de qualquer ilícito, pois o erro foi justificado uma vez que, se realmente existisse a situação de fato narrada, a ação seria legítima.

O CP, por sua vez, pela reforma introduzida pela lei 12.015/09, criou em seu Título VI a denominação de Crimes contra a Dignidade Sexual e estabeleceu para o estupro a persecução penal intentada pela representação da vítima, por se tratar de ação pública condicionada. Vale dizer que a mulher vítima oferecerá a condição de procedibilidade se for de seu interesse e conveniência. Será, no entanto, incondicionada se tratar de vítima menor de 18 anos ou pessoa vulnerável.2

O STF, a título de argumentação concorrente, por oito votos contra dois, decidiu que as mulheres grávidas de feto anencéfalo, assim clinicamente comprovado, podem optar pela interrupção da gestação, por acarretar risco à saúde física e psicológica. Isto porque o anencéfalo, apesar de biologicamente vivo, juridicamente pode ser considerado morto, por não ter vida em potencial, a spes vitae dos romanos.

Finalizando, o assunto aborto vem carregado de força e peso e deve ser moldado sob o ângulo da dignidade da pessoa humana. O espaço é densamente povoado de ideias a serem depuradas e reequacionadas à realidade da mulher brasileira, que deve ser prestigiada no exercício do seu direito à saúde sexual e reprodutiva. Mas é sempre bom lembrar que nem sempre as propostas que carregam incentivo financeiro apagam as marcas de uma agressão.

Resta uma derradeira observação a fazer: o nome da lei, com de nominação incoerente e incompatível com a natureza humana, deve ser alterado para bolsa-embrião ou bolsa-nascituro, pois se prevalecer a denominação atual, a tutela será conferida ao estuprador.

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1 Referidos documentos são apresentados na série sobre Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, de responsabilidade do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas do Ministério.
2 Artigo 225 e seu parágrafo único do CP.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e advogado; Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é advogado.

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