Circus

Bondade

Bondade

9/10/2009

Bondade me lembra o Ranulfo com sua marca na testa ISO 9000 que lhe foi vincado na face para que se saiba que pode haver outrem apenas e somente parecido, homem impossível de condenar alguém como fazê-lo sem caminhar quilômetros dentro das alpercatas do outro, não foi assim que lhe ensinaram em Ventania? E que tinha tudo para continuar sendo juiz de família não fossem as Parcas mandá-lo para o Alçada Criminal onde quem o conhecesse lhe perguntava atônito: que faz você aqui? E ele lá com seu sorriso que não diz nem sim nem não mineirissimamente. E se um casal se desavinha e isso dava em processo judicial lá está ele ouvindo sacramentalmente sem batina porém o homem que se explica: e deu-se que a mulher em lugar de fazer o almoço se pusera a tagarelar mais a comadre dela a tal que batizou o do mei e quando volto da roça cadê o feijão? e o arroz? e a couve? E aí eu lhe dei uns tapas mesmo que era por amor do escarmento não vão as filhas aprender com ela essa deslição que é o não trabalho, não foi Deus que falou no suor do teu rosto? então não vê que eu sou homem da roça? Mostra as mãos calosas ao juiz compassivo que tudo ouve para espanto da escrevente que mal o conhecia naquele época, isso se deu nos antanhos. Diga se eu não merecia de exemplar ela mais as meninas que tudo viram e que pequenas ainda não podem fazer os que-fazeres da casa mas há que aprender. E deu-se que lhe arrancou meu modo bruto algum sangue lá da boca dela e ela se assustou e foi até a casa da tal comadre que lhe disse isso não pode ficar assim! procure o doutor promotor da comarca! E isso ela diz por causa da televisão que ela vê lá na casa dela e que mudou a cabeça de muita mulher que não quer mais se dar ao respeito da obediência.

Mas o senhor não pode bater em sua esposa, diz o juiz compreensivo paternalmente aquilo que se diz que pai deve de ser e o outro arrebenta nuns bugalhos enormes: Nãããão? Quer dizer, bater com soco e com produção de sangue vosmicê não deve, dê aí nela uns empurrõezinhos! Esse é o Ranulfo.

Lembra meu vero pai naquilo de entregar o dinheiro todo do salário mensal nas mãos da Marina lá dele como o meu fazia com a dele, que Marina não se chamava, e que quando se saísse de casa: velha, me vê aí uns trocados para a condução. E não é que ele o meu pai chegava à noite transformado o dinheiro da condução em livros raros descobertos num sebo qualquer do caminho talvez até em francês sendo e o filho universitário sem entender aquilo como pode um homem que mal e mal fez o grupo escolar ler livro escrito em francês?

Acho que o Ranulfo deve de fazer igual com aquele cheque solteiro que a Marina destaca do talão que lhe fica na bolsa dela e lhe diz a ele: tome. Não tivesse sido ele carpidor de café na mocidade.

E havia quem dissesse que o homem era admirador do Marx mais o Fidel mais outros tantos comunistas pois jamais que o vissem em missa na comarca a menos que de sétimo dia fosse não tendo ele embora cara de quem gostasse de ensopado de criancinha com quiabo e outros acepipes para lhe realçar o sabor da comida como se diz que na Rússia se fazia amiúde não é que o homem até em Cuba esteve? mal sabendo os ignaros mal informados ou maledicentes profissionais que ele se ali esteve foi menos pelo prazer político e mais por força do vitiligo que lhe mancha a pele não fosse aquilo algo que degenerasse em coisa mais profunda e comprometedora de sua perfeita saúde não fosse ele o hipocondríaco que todos lhe reconhecemos e que se contamina até por palavras, emprenhado pelas oiças no dizer da jocosa Marina, não é que até inflamação do útero ele supôs que tivesse quando morreu a mulher do colega fulano de tal de uma doença dessas? Esse é o Ranulfo.

E se falei em Cuba informo aos interessados que lá a doutora fulana especialista em coisas de pele é extremamente minuciosa mandando nosso Ranulfo tirar a roupa toda e então ele fica só de cuecas, cujo modelo eu não revelo para não ser indiscreto, e ela educadamente: yo no sé cómo se dice nudo en Brasil pero acá nudo quiere decir sin ninguna pieça de la ropa!

E que quando viu ele o Tácito Morbach Góes Nobre caminhando pelo tapete vermelho afamado tendo ao lado o Alves Braga a conversarem sobre amenidades ele lhes apodou Preta de Neve e um dos sete onde estão os outros seis? o que ele desmente categoricamente com dizer que isso foi invenção do Rodrigues de Alckmin, então desembargador depois Ministro do Supremo homem de fino humor e verdadeiro autor da bem lançada boutade, grande juiz mesmo sendo da opus dei.

E enquanto juiz familiar eis que lhe chega às mãos do sobredito Ranulfo envelope com papel timbrado Tribunal de Justiça de São Paulo Conselho Superior da Magistratura Palácio da Justiça e ele lá pensa que será isso? pensa nada! vai abrindo o envelope bem devagarzinho como se se cuidasse de doce de leite e lê ao depois a convocatória a Vossa Excelência para comparecer à sala tal no dia tal para prestar esclarecimentos nos autos do processo tal. E no dia tal lá vai ele sem a menor pressa e o gentil porteiro boa tarde excelência! boa tarde meu jovem! e o porteiro sorridente lhe abre a porta alta e pesada da sala da Presidência e ele diz licença! Vamos entrando e lá vem o Young da Costa Manso estendendo-lhe amistoso a mão direita como vai o senhor? Bem obrigado e Vossa Excelência? Como Deus é servido! Sente-se sente-se e eles ambos se sentam naquele sofá de couro preto muito bonito que ainda está lá até hoje a resistir a bundas e bundas importantes e o Presidente lhe mostra uns papéis dizendo o doutor fulano presidente da câmara tal desta Colenda Corte me enviou este ofício dizendo que o senhor não costuma assinar suas decisões, veja só! Mas como senhor Presidente? diz o Ranulfo obsequioso e o outro pois é! E eles mandaram cópia de sentença onde se vê que realmente não há ali assinatura sua mas apenas rubrica em todas as folhas inclusive na principal veja! E o Ranulfo olha os papéis e dá uma risada bem mineira saca do bolso a carteira funcional que mostra ao Young veja se não é a mesma assinatura e é graças a ela que me pagam até cheques, brinca. E o Presidente do Colendo Tribunal de Justiça e do Egrégio Conselho Superior de Magistratura diz ora, ora, ora! E confere isto com aquilo e coça seus brancos cabelos bastos e lhe diz ao Ranulfo: vamos então fazer o seguinte a partir de hoje o senhor encomprida um pouquinho mais, coisa pouca, esta perninha aqui de sua assinatura para distingui-la da rubrica propriamente dita para que não me venham novamente esses desocupados a me tomar o pouco tempo que tenho com um ofício dispensável como este. E a propósito como vai a fazenda? e o nelore? Ouvi dizer que agora estão ganhando muito dinheiro é com criação de cavalo manga larga eu porém.

 

1 Do livro Menas Verdades – Causos forenses ou quase (inédito)

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Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.