Dados Públicos

Contratos públicos e inovação: um ano do Marco Legal das Startups

Um ano após a vigência do marco legal, é de interesse acadêmico investigar como a Administração Pública e a iniciativa privada reagiram à novidade.

18/8/2022

O Marco Legal das Startups (MLS), instituído pela Lei Complementar 182/21, inaugurou uma nova modalidade de contratação pública denominada "Contrato Público para Solução Inovadora" (CPSI). Um ano após a vigência do marco legal, é de interesse acadêmico investigar como a Administração Pública e a iniciativa privada reagiram à novidade.

De início, cumpre pontuar que o MLS nasceu com a ousada proposta de desburocratizar o procedimento de contratação de práticas tecnológicas pelo Poder Público e de fomentar o empreendedorismo inovador. Há a reafirmação do laço de cooperação entre o público e o privado, direcionado ao incentivo do estímulo à inovação nas empresas e à modernização tecnológica do Estado a partir de seu poder de compra (art. 12, II). Por meio do CPSI, busca-se o "fomento à inovação e as potenciais oportunidades de economicidade, de benefício e de solução de problemas públicos com soluções inovadoras" (art. 3º, VIII).

Em termos normativos, a edição do MLS não trouxe muitas novidades para a seara do direito administrativo licitatório, visto que, de certa forma, as práticas ali delineadas já eram consideradas possíveis a partir da combinação de outros diplomas legais1 (em especial: lei 10.973/2004 - Lei de Inovação - e sua consequente alteração pela lei 13.243/2016; lei 14.133/2021 - Nova Lei de Licitações; e lei 13.303/2016 - Lei das Estatais).

Não se discute, contudo, que houve a inauguração de práticas modernas e convenientes com o cenário empresarial atual, sobretudo ao se considerar que as startups - protagonistas da norma - são tidas como os grandes berços da inovação tecnológica. Com isso, buscou-se aproximar a Administração Pública de boas técnicas resolutivas, de modo que constituem finalidades do CPSI "resolver demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia"; e "promover a inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado" (art. 12, caput).

A edição do MLS vincula todo o Poder Público ao novo regime de compras, até mesmo a Administração Pública direta, autárquica e fundacional, inclusive no âmbito estadual, distrital e municipal2 (art. 12, § 1º), com possibilidade de adoção também pelas empresas públicas e sociedades de economia mista3, no que couber, observadas disposições específicas em regulamento interno (art. 12, § 2º).

Para estudar o CPSI, inaugurado pelo MLS, optou-se por analisar editais públicos lançados ao longo do último ano e em diversos níveis da Administração Pública.

No âmbito do Programa ImpulsiONar, parceria do Instituto Lemann com vários municípios brasileiros, foram lançados diversos editais baseados no MLS com o objetivo de construir práticas inovadoras voltadas à construção de tecnologias para o combate da defasagem nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática entre os estudantes do 6º ao 9º ano da rede pública de ensino4.

Todos os editais foram elaborados com a finalidade de atrair edtechs - startups focadas no desenvolvimento de soluções tecnológicas em educação - para encontrar caminhos inovadores de combate à defasagem escolar a partir de um problema social específico: o déficit nas disciplinas básicas durante as fases finais do ensino fundamental.

Para atrair competitividade e fomentar a participação da maior quantidade possível de soluções, os editais delimitam o escopo da licitação com proposituras abrangentes e fazem constar especificamente os resultados que são esperados com a contratação pública, nos moldes do que autoriza o art. 13, § 1º, do MLS. No âmbito do programa ImpulsiONar, muitos são os desafios encontrados pelos gestores em educação no Brasil, de modo que a possibilidade de aliar tecnologia com práticas pedagógicas a partir da contratação pública abre novas portas para soluções criativas.

Contribui para a abertura de novos caminhos a possibilidade de delimitação aberta do objeto do contrato, a partir da indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela Administração Pública, o que permite que as startups proponham práticas tecnológicas modernas e personalizadas para a resolução da necessidade específica. Há uma integração entre a demanda e a oferta, de sorte que essa última passa a ter que se adequar ao problema a ser solucionado não mais de forma abstrata, mas para atender às necessidades específicas do ente público.

Para a seleção da proposta, dispõe o art. 13, § 4º, do MLS que os critérios de julgamento, sem prejuízos de outros constantes do edital de licitação, devem considerar: o potencial de resolução do problema a partir da solução proposta; a potencial economia para a administração pública; o grau de desenvolvimento da solução; a viabilidade e a maturidade do modelo de negócio da solução; a viabilidade econômica da proposta, considerando os recursos financeiros disponíveis; e a demonstração comparativa de custo e benefício da proposta em relação às demais.

Há, ainda, a possibilidade de contratação de mais de uma proposta, cujo quantitativo deve ser exposto no edital (art. 13, § 6º), inclusive em modalidade de consórcio (art. 13, caput). Com isso, o legislador tentou aproximar startups concorrentes para a resolução conjunta de problemas específicos, o que cria cooperação para o cumprimento do interesse público - além de alocação mais eficiente dos recursos.

Nos editais do Programa ImpulsiONar há vedação específica da contratação de consórcio, diferentemente do que ocorre no Edital CPSI - Licitação n. 2857625219 - lançado pela Petrobrás S.A em 2021. Neste caso, a opção pela possibilidade de formação de  consórcios para a proposta de soluções tecnológicas conjuntas aos desafios da Empresa foi o de atrair a maior quantidade possível de players do mercado nacional e internacional para dirimir questões técnicas inerentes às áreas finalísticas.

O edital contempla diversos desafios que visam munir a Petrobras S.A de soluções tecnológicas nas áreas de robótica, tecnologias digitais e saúde. Os desafios são divididos em Fast Track - de seleção única e simplificada - e Inception - cuja seleção é feita em duas etapas. No primeiro caso, as propostas foram submetidas a uma comissão de licitação composta por especialistas responsáveis por avaliar os critérios de julgamento do edital. Já quanto aos desafios mais complexos (Inception), as propostas foram indicadas pela Autoridade Superior e apresentadas pela Comissão de Licitação ao Comitê Técnico composto por especialistas na área de cada desafio, com o objetivo de dirimir dúvidas específicas.

Cabe pontuar que o MLS dispõe que as propostas devem ser julgadas e avaliadas por comissão especial integrada por, no mínimo, três pessoas de reputação ilibada e notório conhecimento técnico, obrigatoriamente sendo: um servidor público integrante do órgão contratante; e um professor de instituição pública de ensino superior na área relacionada ao tema objeto do contrato (art. 13, § 3º, I e II).

Nesse ponto, as críticas especializadas apontam um engessamento no processo de tomada de decisão e de escolha da melhor proposta, já que a designação de comissão especial, de acordo com a doutrina administrativista, não é capaz de assegurar completamente a tecnicidade e a impessoalidade5. Isso porque, sobretudo no campo de tecnologia e inovação, há uma específica proximidade entre os atores e os técnicos-julgadores que costumam ser conhecidos, direta ou indiretamente, o que pode impor na influência de critérios subjetivos na tomada de decisão6.

Uma vantagem é que os editais ora analisados se aproveitaram da possibilidade de análise posterior da documentação relativa aos requisitos de habilitação (art. 13, § 7º), o que traz maior celeridade ao procedimento. Agora, a administração pública somente avança para analisar o dossiê daquelas propostas que passaram pelo crivo prévio de adequação.

Ainda, há a possibilidade de dispensa motivada da documentação de habilitação ou da prestação de garantia para a contratação (art. 13, § 8º, I e II), cuja permissividade legal objetiva também oportunizar a participação de startups que não tenham experiência prévia em processos licitatórios e que buscam no poder público oportunidades de crescimento.

É certo que o MLS e o CPSI trazem vantagens para a Administração Pública e para o setor das startups no Brasil, em especial as govtechs. Sua consolidação depende do desenvolvimento de hábitos jurídicos positivos que serão estruturados com o passar dos anos e a partir do pronunciamento dos órgãos de controle em casos concretos. Sua existência no mundo normativo reforça a concepção de que o avanço social, em questão de direito administrativo, depende do alinhamento com a inovação e tecnologia.

Em matérias de compras públicas, o alinhamento com as melhores soluções em tecnologia e inovação é o diferencial para a construção de políticas públicas de qualidade que façam sentido para o progresso do País. No último ano, houve a mobilização de CPSI para atrair o setor de tecnologia para a administração pública. Viu-se que, a partir do MLS, o Programa ImpulsiONar auxilia na conexão de edtechs com órgãos da administração pública que necessitam de soluções inovadoras para melhorar a qualidade do ensino na rede pública.

A partir de outro contexto, também delineou-se a aplicação do CPSI no âmbito do Estado Empreendedor para garantir maior proximidade com o setor privado na busca de soluções e serviços inovadores na área de petróleo e energia. Ficam claras as vantagens do uso de instrumento de contratação pública tanto para a Administração Pública, quanto para a iniciativa privada.

Logo, muito embora ainda exista muito no que avançar em termos de legislação de compras públicas e inovação, é indubitável que o MLS abriu portas para a aproximação mais eficiente, e com certa segurança jurídica, entre Estado e startups.

__________

1 Para críticas que se aprofundam nesse ponto, conferir: Schiefler, Gustavo. CPSI no Marco Legal das Startups: o que se vê e o que não se vê. Revista Conjur, 08 de agosto de 2021.

2 Exemplo do Edital n. 003/2021 do Município de Guaramiranga/CE que objetivou a construção de inovação tecnológica para combater a defasagem nas disciplinas Língua Portuguesa e Matemática dentre os estudantes do 6º ao 9º ano da rede pública de ensino.

3 Vide, como exemplo, o Edital Petrobrás de Chamada Pública de Testes de Soluções 2021/1, elaborado com base no MLS e com o objetivo de "selecionar soluções já validadas ou em fase de validação no mercado, com potencial para atender os desafios da Petrobras".

4 Exemplos: Edital n. 003/2021 do Município de Guaramiranga/CE; Edital 001/2022 do Município de Volta Redonda/RJ; Edital 001/2022 do Município de Bonito/PE; Edital n. 001/2021 do Município de Cabrobó/CE; Edital n. 001/2022 do Município de Santa Maria/RS.

5 Ver Di Pietro, Maria Sylvia. Licitações e contratos administrativos. São Paulo: Editora Forense, 2021.

6 Em igual sentido, conferir: Schiefler, Gustavo. CPSI no Marco Legal das Startups: o que se vê e o que não se vê. Revista Conjur, 08 de agosto de 2021.

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Fabrício da Mota Alves é advogado, sócio-coordenador em Direito Digital e Proteção de Dados do Serur Advogados. Conselheiro Consultivo da ANPD. Conselheiro e membro fundador da Associação Brasileira de Governança Pública de Dados Pessoais (govDADOS.br). Instagram: @motaalves.fabricio

Rodrigo Borges Valadão é procurador do Estado do Rio de Janeiro. Consultor no Terra Rocha Advogados. Membro do Comitê de Governança em Privacidade e Proteção de Dados do Estado do Rio de Janeiro. Presidente e Membro Fundador da Associação Brasileira de Governança Pública de Dados Pessoais (govDADOS). Mestrando em "Privacy, Cybersecurity, Data Management, and Leadership" pela Universidade de Maastricht (Países Baixos). Especialista em Advocacia Pública pela FGV/RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ. Doutor em Direito Público pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha), em cotutela com a USP. Instagram: @rodrigobvaladao