Dinâmica Constitucional

Trabalho por aplicativos e subordinação algorítmica: Um embate entre o STF e o TST

As novas tecnologias trazem benefícios à vida cotidiana, como transporte e entrega de comida via aplicativos. Porém, há ameaças subjacentes a serem consideradas.

15/3/2024

As novas tecnologias impactam nossas vidas de diversas maneiras. Na maioria dos casos, os aspectos positivos, que facilitam o dia a dia, se sobressaem.

Contudo, não se percebe, com a mesma clareza, as ameaças que costumam vir a reboque.

O chamado trabalho por aplicativos, como, por exemplo, Uber, ifood e 99 são exemplos claros desta realidade.

Não há dúvida de que os serviços prestados geram inúmeros benefícios à sociedade. A facilitação do transporte, fornecimento de refeições, dentre outros que são proporcionados pela tecnologia, tornam a vida mais fácil.

A geração de novas frentes de trabalho e renda também não pode ser desconsiderada, já que contribui para o necessário giro da economia.

Por outro lado, não há como se desconsiderar que por trás destes benefícios há uma força humana que se sujeita à uma precarização de condições de trabalho.

São justamente os prestadores de serviços, motoristas, motoboys, ciclistas etc., tratados pelas plataformas como “parceiros” no negócio, que mais sofrem com a ausência de uma justa regulamentação do trabalho por meio de aplicativos.

Uma realidade que vem chamando a atenção da Justiça do Trabalho e de estudiosos do tema.

Uma das repercussões jurídicas de âmbito nacional foi a decisão proferida pelo TST, que reconheceu a existência de vínculo empregatício entre um motorista e a empresa Uber1.

Dois argumentos destacaram-se nesta decisão. O primeiro é que a Uber deve ser considerada uma empresa de transporte e não uma plataforma digital.

O segundo – mais impactante – é que haveria inegável subordinação entre a empresa e os motoristas.

Analisando tecnicamente a questão, a existência de uma subordinação, ainda que em diferentes graus, fica difícil de ser refutada.

Os motoristas não possuem nenhum tipo de controle em relação ao preço das corridas, dinâmica das tabelas de remuneração, muito menos sobre o percentual a ser descontado sobre o valor.

Até a classificação do veículo utilizado é definida unilateralmente pela empresa, que pode baixar, remunerar, aumentar, parcelar ou não repassar o valor dos deslocamentos.

A decisão da mais alta corte trabalhista visualizou que a autonomia dos motoristas, na prática, fica restrita apenas à escolha de horários e das corridas que pretendem realizar.

Além disso, o TST ponderou que a empresa estabelece parâmetros para aceitar determinados motoristas e que o seu desligamento, na hipótese de descumprimento de normas internas, é feio de modo unilateral.

É na referência ao conceito de “subordinação algorítmica” que a decisão do TST provoca maior reflexão.

Um elemento inovador, que cada vez mais impacta nossas vidas, não apenas no contexto dos trabalhos intermediados por aplicativos, mas em diversas situações que passaram a integrar o cotidiano, como o emprego de redes sociais, por exemplo.

A decisão levou em conta que a correta interpretação das leis trabalhistas, acompanhando a evolução tecnológica, expande o conceito de subordinação clássica nas relações de trabalho.

Toda expansão de conceitos tem repercussões jurídicas inevitáveis.

As empresas que desenvolvem plataformas por aplicativos, a fim de alcançar os meios informatizados de comando, controle e supervisão, codificam o comportamento dos motoristas ou colaboradores.

Esta codificação se dá por meio da programação dos seus algoritmos, nos quais inserem suas estratégias de gestão, por meio de uma programação cujas diretrizes ficam armazenadas em seu código-fonte, de caráter sigiloso e, portanto, não compartilhado.

Sem adentrar se tais características apontam para a existência de vínculo de emprego ou não, o fato é que se fazem presentes na vida diária dos motoristas de aplicativos. Não há como refutá-las.

A matéria é tudo, menos simples. Dentro do próprio TST há entendimentos divergentes sobre o tema, ora reconhecendo vínculo de emprego, ora rejeitando2.

A questão do reconhecimento de vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas que operam aplicativos tem sido tema de duro embate entre o STF e a Justiça do Trabalho.

O STF vem reconhecendo a constitucionalidade de outras formas de trabalho diferentes da CLT, opondo-se à jurisprudência de determinadas turmas do TST3.

Fica visível o descompasso. A Justiça do Trabalho tende a ser mais conservadora, ao reconhecer a precariedade da situação dos trabalhadores por meio de aplicativos, atraindo o reconhecimento do vínculo de emprego.

O STF, por sua vez, tende a ser mais aberto a novos formatos de parcerias de negócios, derrubando sucessivas decisões de vínculos de emprego, em particular em atividades mediadas por tecnologias.

Em julgamento que se avizinha, caberá ao STF propor uma solução pacificadora. Destaca-se a análise do Tema 1.291, objeto do RE 1.446.336, que servirá de importante paradigma para a questão4.

O principal argumento da Uber, para afastar o estabelecimento de vínculo de emprego entre a empresa e os motoristas, é que a decisão do TST tolhe o direito à livre iniciativa de exercício de atividade econômica, além de colocar em risco o seu modelo de negócios, considerado por ela como um marco revolucionário para a mobilidade urbana5.

Por sua vez, a Justiça do Trabalho visualiza que há precarização das relações trabalhistas, em ambiente de inegável subordinação e, consequentemente, o afastamento de inúmeros direitos constitucionalmente assegurados.

Deixando de lado, por ora, as divergências entre o STF e o TST, pontua-se que este salutar debate não pode ofuscar um aspecto essencial à controvérsia.

O trabalho por meio de aplicativos requer, urgentemente, regulamentação específica, que não deveria ficar a cargo dos tribunais, mas sim do Congresso Nacional, considerando a competência privativa da União para legislar sobre a organização do sistema nacional de emprego e as condições para o exercício das profissões (art. 22, XVI CF).

O Governo Federal propôs uma abordagem relacionada à regulamentação, encontrando forte resistência por parte das empresas6.

Muito preocupante é a questão previdenciária que envolve os trabalhadores de aplicativos. O fato de muitos motoristas trabalharem, simultaneamente, para diversas empresas, com cargas horárias variáveis e com ganhos cada vez menores, vem inviabilizando sua inclusão no sistema previdenciário.

Por ser uma questão ligada às relações trabalhistas, a Justiça do Trabalho deveria, em um modelo ideal, ter a competência para dar a última palavra, cabendo ao STF apenas uma intervenção residual, na hipótese de a justiça especializada violar, flagrantemente, dispositivos constitucionais ou de proceder a uma interpretação da Constituição manifestamente equivocada.

É certo que a Constituição Federal não se ocupa – e nem poderia – dos detalhes de relações de trabalho como o transporte ou entregas por meio de aplicativos.

Deste modo, há um amplo espaço de conformação legislativa na matéria, que deve ser reconhecido em favor do legislador.

É ao Legislativo, pelo princípio da separação dos poderes, que deve ser reconhecido um espaço de avaliação e de prognoses neste tema, cabendo ao Judiciário respeitá-las, salvo nos casos de flagrante violação das disposições constitucionais.

A intervenção exagerada do STF em diversas matérias tente a conferir às demais instâncias do Poder Judiciário a pecha de meros pontos de passagem, negando a natureza da justiça especializada, situação que compromete a própria funcionalidade do sistema judicial.

É bem verdade que a inação do Congresso Nacional em regulamentar temas importantes contribui para a judicialização excessiva e para o cenário de insegurança jurídica daí decorrente.

Diga-se o mesmo frente à dificuldade de o TST pacificar matérias de sua competência.

São disfuncionalidades que acabam por atrair a intervenção do STF em diversos assuntos, congestionando a sua pauta, que somadas à tendência de o tribunal avocar para o seu poder de decisão múltiplos temas, levam à atrofia do sistema.

Não se pode negar que a inovação proporciona o surgimento de novas categorias, que podem não encontrar compatibilidade com os modelos tradicionais de regulamentação. Aqui a obsolescência ou a inadequação não podem ser desconsiderados.

Entretanto, estas novas categorias podem gerar ameaças, cujos princípios constitucionais vigentes, sobretudo os direitos fundamentais, devem combater.

É justamente o caso do trabalho por aplicativos, cuja subordinação algorítmica parece irrefutável.

Cabe, pois, ao Congresso Nacional assumir as rédeas da regulamentação do trabalho por aplicativos, ouvindo todos os setores envolvidos, com foco nas peculiaridades destes sistemas de trabalho, ciente de que se equivocará, caso se prenda a um dos extremos.

O mesmo raciocínio vale para todas as instâncias do Poder Judiciário, sobretudo enquanto pender a regulamentação legislativa.

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1 Disponível em: https://tst.jus.br/web/guest/-/8%C2%AA-turma-mant%C3%A9m-reconhecimento-de-v%C3%ADnculo-de-motorista-de-uber?p_l_back_url=%2Fweb%2Fguest%2Fresultado-de-busca%3Fq%3Duber%26tag%3Duber%26category%3D55841

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/388255/tst-manda-para-o-stf-disputa-de-vinculo-entre-motorista-e-uber

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/395544/vinculo-de-emprego-jt-reiteradamente-descumpre-jurisprudencia-do-stf

Disponível em: Tema 1.291 de repercussão geral - Reconhecimento de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora de plataforma digital. https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6679823&numeroProcesso=1446336&classeProcesso=RE&numeroTema=1291

Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=528592&ori=1

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/402727/stf-decide-julgar-vinculo-com-aplicativo-e-lula-assina-pl-sobre-o-tema

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Colunista

Marcelo Schenk Duque é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Foi pesquisador convidado junto ao Europa Institut da Universidade de Saarland, Alemanha. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS (mestrado e doutorado); Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional; Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-alemã de Juristas: DLJV. Presidente da Comissão Especial de Reforma Política da OAB/RS (CERP). Segunda formação superior: engenharia química. Instagram: @marschenkduque