Direitos Humanos em pauta

"Dias de Lutas, Dias de Glória"*: A utopia da igualdade nos espaços de poder

Iniciamos o artigo de hoje, trazendo à memória apenas o refrão da música do Grupo Charlie Brown Jr., "Dias de Lutas, Dias de Glórias" - lançada em 2005 - para parafrasear a luta por igual neste país, em especial, nos espaços de poder no Poder Judiciário.

6/2/2024

Hoje, 6/2/2024, após um longo período de férias, retornamos às publicações semanais desta coluna que tem por objetivo produzir reflexões e debates sobre temas atuais relativos aos direitos humanos. Para tanto, iniciamos o artigo de hoje, trazendo à memória apenas o refrão da música do Grupo Charlie Brown Jr., "Dias de Lutas, Dias de Glórias" - lançada em 2005 - para parafrasear a luta por igual neste país, em especial, nos espaços de poder no Poder Judiciário.

Desde a redemocratização do Brasil, o artigo quinto (5º) da nossa Constituição Federal é o bastião dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e da coletividade em nosso país. Nele, ancora-se o ideal utópico de igualdade entre todos e todas, em uma das nações mais desiguais do mundo.

Ideal este, manifesto na letra da lei, que à época buscou extirpar de uma vez por todas, da norma formal, quaisquer distinções entre os grupos populacionais em razão de raça, cor, etnia, religião, gênero, orientação sexual, classe social, entre outros,  bem como, também, por fim as ideias eugenistas - que objetivava uma limpeza étnica e social das raças ditas inferiores - e cuja as bases serviam para elaboração de políticas segregacionistas, ainda que de forma implícita.

Quando o legislador(a) finalmente  admitiu que:

"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade"

Assentou, também, como objetivo dessa não a promoção da igualdade, sem distinções e livre de preconceitos, por sua vez (art 3º da CF).

Pois bem!  A despeito das inumerass desigualdades raciais, sociais, economicas avassaladoras existentes neste país, em especial entre dois grupos populacionais específicos - negros e brancos - fitaremos apenas o espaço do judíciario, isto porque a a abertura do ano judiciário coincide com dois fatos muito importantes - que tratarempos mais à frente - e que representam pequenos passos no avanço da luta pela igualdade em espaços de poder.

A história já nos mostrou que a promoção da igualdade passa necessariamente pelo enfrentamento do racismo sistêmico e estrutural como espinha dorsal da construção deste país, isso implica dizer que toda e qualquer política deve ser pensada a partir de uma perspectiva antirracista, que considere a igualdade em panorama assimétrico, conforme nos ensina o professor Adilson José Moreira.

Segundo o último diagnóstico do Poder Judiciário1, realizado em 2023, a grande maioria (83,8%) dos magistrados da Justiça brasileira é branca, enquanto que as pessoas pretas representam apenas 1,7%, já os pardos é um pouco maior: 12,8% dos magistrados e magistradas. O dado desolador revela o quanto o judiciário está distante do jurisdicionado sabendo que a produção da justiça é atravessada, sim, por raça, classe e etc., não é possível esperar certa medida de justiça com tamanhos contrastes que não foram superados.

A ideia de igualdade nos espaços de poder e os relevantes efeitos que ela pode produzir, parecem-nos cada vez mais utópicos.

As políticas de ações afirmativas encampadas pelos movimentos negros brasileiros no ínicio dos anos 2000, primeiro nas universidades (Lei de Cotas nº 12.711, de 2012), depois nos concursos públicos (lei 12.990, de 2014), vem produzindo inumeros resultados positivos, como o aumento da presença de pessoas negras nas universidades públicas e no serviço público e sua continuidade e ampliação é a medida mais inteligente para redução das desigualdades.

Contudo, há que se destacar que esse tipo de política afirmativa está sendo expandido aos poucos para outros espaços de Poder e adquirindo novas formas, a  exemplo,  do Comitê de Diversidade e Inclusão da AGU, criado para elaborar ações de enfrentamento ao racismo na instituição, dentre elas destaca-se a criação do Programa de bolsas Esperança Garcia, voltado à capacitação de candidatos negros e negras para concursos das carreiras da advocacia pública2. Além disso, o ministro Roberto Barroso anunciou, em seu discurso no Dia da Consciência Negra (2023), uma série de medidas para o enfrentamento do racismo estrutural na institucionalidade do Poder Judiciário.

Todos os pequenos e grandes avanços que parcamente conseguimos listar, é fruto da luta de décadas por igualdade dos coletivos e movimentos negros, lembremos, poré, que outrora lutávamos por liberdade - como Dandara e Zulu -, hoje lutamos por igualdade. Dias de lutas!

Porém, ainda que raros, também vem os dias de glória e hoje (06/02), assim como ontem (05/02), são dois desses poucos dias que devem ficar registrados para sempre na memória e na história.

No dia 05/02, a Dra. Selma Leão, mulher negra, nortista, de origem pobre, tomou posse no cargo de desembargadora no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá), na vaga oriunda do quinto constitucional destinada à advocacia.

E no dia de hoje, 06/02, a Dra. Vera Lúcia Santana Araújo, outra mulher negra, nordestina, também de origem pobre, toma posse como Ministra substituta no Tribunal Superior Eleitoral.

Ambas, mulheres experimentadas pelo tempo, marcadas pelas vicissitudes do racismo, do machismo e de toda sorte de opressão que atravessam suas existências, forjadas nas lutas sociais, na advocacia aprenderam a ser resilientes e re-existentes para o enfrentar o doloroso processo de chegada a esses lugares. Agora, ambas são alçadas a postos de poder e de tomada de decisão e carregam consigo todo o peso da luta ancestral de um povo, peso este que não lhes permitirá errar, ao passo que também inspiram outras e outros a seguirem seus passos e imitarem seus feitos.

Assim, no memorável dia de hoje, esta coluna registra na história suas homenagens à Desembargadora Selma Leão e da Ministra Vera Lúcia Santana Araújo, que de modo extraordinário, por força do que representam e dos lugares onde chegaram, personificam a luta e conquista de toda uma coletividade, e dão ligeira concretude a abstrata ideia de igualdade, tão belamente inserido do art. 5º da Constituição.

 Os dois eventos somam-se em um grande avanço, fazendo com que os sonhadores  que entregam seus esforços à luta antirracista e por vezes são desiludidos, possam duvidar se é mesmo uma utopia a ideia de igualdade.

Dias de glória! 

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*Música Dias de Lutas, dias de glória: Composição: Thiago Castanho / Chorão. Intérprete: Grupo Charlie Brown Jr.

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.